Capítulo 1

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Amnésia

"Um acontecimento vivido é finito. Um acontecimento lembrado é ilimitado."

Walter Benjamin

A emergência ficava na parte norte daquele labirinto de corredores de um branco fosco, meio sujo e visivelmente desbotado. O doutor Lucas entrou no quarto por volta das nove horas da manhã, em seguida, fechou a porta atrás si meticulosamente, como sempre agia em qualquer situação fazendo o que quer que fosse. Era um homenzarrão de pela negra, dono de um porte atlético invejável. Para um desavisado que o visse apaisana andando na rua, possivelmente suporia tratar-se de um corredor olímpico aposentado, ou talvez um velho atleta de basquete, ou quem sabe um ex-boxeador profissional que provavelmente dera muito trabalho aos seus infelizes oponentes durante o seu apogeu. Entretanto, obviamente, tais especulações não correspondiam a realidade.

Numa conversa casual dias depois ele me revelou ter crescido nas entranhas de uma favela encravada num morro as margens da cidade. Seu pai, que fora um exímio empreiteiro a vida toda, e que a seus olhos fora seu grande herói, lhe ensinou tudo que precisava para se tornar um homem honrado e de boa índole. Ele vivia repetindo: procure sempre fazer o bem aos outros, na mesma medida em que deseja fazer a você mesmo.

Sua mãe, merendeira, conhecia do valor da educação. Tanto ela quanto seu falecido pai se empenharam em educa-lo da melhor maneira possível. Porém o ambiente não lhe era favorável. As estáticas diziam: esse se tornará mais um delinquente. Entretanto, não se deixou levar pela sina que lhe foi imposta. Sua infância pobre não lhe serviu de pretexto para existir mediocremente. Não para ele. Contrariando as infames expectativas, tornou-se um aluno exemplar no período colegial. Já adulto, sua determinação aliada ao seu altruísmo o fez ingressar na medicina onde graduou-se com louvor. Ele poderia angariar muito dinheiro trabalhando para grandes conglomerados privados, no entanto, preferiu atuar no serviço público, simplesmente para poder atender os mais carentes e necessitados de sua antiga comunidade. Para isso, tornou-se chefe da emergência naquele maltrapido hospital.

O tempo passou implacavelmente com a sua inerente constância. Hoje, casado e pai de três filhos, sentia-se grato e satisfeito com o que conquistara na vida. Seus cabelos quase grisalhos denunciavam seus quase cinquenta anos, ao mesmo tempo em que contrastavam com o jaleco exageradamente alvo que vestia. Carregava consigo um estetoscópio pendurado em volta do pescoço e uma pequena lanterna numa das mãos.

– Bom dia! – me cumprimentou enquanto se aproximava.

Ele apanhou o meu prontuário que estava preso na base da cama, e o estudou minuciosamente por alguns segundos. No campo onde lia-se "Nome do paciente", estava escrito "Não identificado".

– Bom dia doutor – respondi.

– Olhe para a luz, por favor – disse apontando a lanterna acesa para o meu olho esquerdo, em seguida alternou para o direito.

– As pupilas estão respondendo normalmente – prosseguiu. – Isso é um bom sinal. Como está se sentindo hoje?

– Ainda sinto fortes dores na cabeça – respondi entranhando a sonoridade debilitada da minha voz.

– Entendo. Vou administrar uma droga que vai amenizar as dores. E enquanto a memória? Conseguiu se lembra de alguma coisa importante? – me perguntou ele.

– Nada ainda doutor. Nem se quer o meu próprio nome. Não me lembro da minha vida antes dos últimos três dias – deixei escapar um resquício de ansiedade ao falar, enquanto me remexia sobre o leito a procura de uma posição mais confortável.

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⏰ Last updated: Apr 22, 2018 ⏰

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