A Saudade

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   A pincelada guiada com destreza deslizava pela tela, criando um belo degrade entre o azul celeste e o alaranjado fim de tarde. Quando o pincel já não possuía muito pigmento, Hannibal molhou-o com laranja e prosseguiu cobrindo a parte já pintada.

   Sua nova moradia era bastante aconchegante. Uma esplêndida casa tradicional japonesa majestosamente construída e erguida por madeira, com Fusuma, panéis deslizantes que atuam como portas corrediças e divisórias que geralmente são decorados com flores, paisagens ou animais. O exuberante telhado semelhante aos dos templos budistas e o jardim japonês com direito a um lago de peixes Koi, de cores variadas. Um paraíso.

   Já era manhã quando Chiyoh saiu. Os dias eram extensos e Hannibal evitava sair de casa por segurança. Mesmo com uma identidade falsa e aparência modificada ele ainda corria riscos. Os dois conseguiam manter o alto padrão de vida do ex-psiquiatra por intermediário de Bedelia, que investiu em uma criação de uma empresa onde utilizara um 'ghost writer' — pessoa que prepara ou escreve anonimamente uma obra literária, artística ou política encomendada por algum autor, e o mesmo só assina com seu nome patenteando a autoria da obra.

   Os rascunhos oficiais vinham do próprio Hannibal e eram publicados no nome fictício de Dittmann M. M. Até mesmo a própria Bedelia utilizava um nome falso para sua persona de empresária, na qual interpretava 'Ashley Julian'. Aquilo não se passava de um passatempo para Lecter não se entediar. Ainda havia alguns bilhões acumulados em contas nas Bahamas, coisa que era desconhecida do FBI.

   Durante todos esses três anos, até mesmo Jack Crawford adquiriu um dos livros que o canibal escrevera, o que era um pouco irônico. Se ele descobrisse isso um dia, o rancor guardado por Hannibal Lecter só aumentaria em proporções catastróficas.

   Bedelia Du'Maurier não conseguiu sair da órbita do ex-paciente. Como ela mesma um dia disse, é difícil não se sentir seduzido pelos encantos de Hannibal. Todos são facilmente atraídos por seu requinte e inteligência, mas se tivessem plena consciência do que se esconde atrás desse traje...não sobrariam admiradores. Por algum motivo não tão racional, permitiu-se a continuar do lado dele mesmo tendo a certeza de que algum dia no futuro iria ser morta por aquelas mãos que tocavam uma melodia no cravo tão bem. Ainda que o seu destino fosse a morte, o desejo de estar o ajudando tocava mais alto que o instinto de sobrevivência.

   Will Graham era o holofote de Jack e consequentemente as atenções da polícia estavam sobre ele. Após a fuga de Hannibal, ela foi investigada e convocada para prestar depoimento, entretanto, fora apenas isso. Era como se jamais tivesse algum envolvimento com o homem. E com uma atuação ardilosa de vítima traumatizada, conseguiu dobrar todos ao seu redor.

   A cólera de Jack e busca por justiça poderiam ser eternas, toda via, os rastros deixados pelo canibal iam se esvaindo a cada dia, e a demanda de verba liberada para uma investigação já estava no limite. O que restava era uma busca por conta própria, o que não seria nada vantajoso e demorado, com riscos de se obter nenhum resultado. Hannibal Lecter novamente estava triunfando.

   Hannibal gostava do Japão. Obviamente quando jovem, sofreu uma grande influência por conta da esposa do seu tio Robert Lecter, entretanto, a cultura oriental o fascinava por completo. Seria uma pena se tivesse que deixar a Ásia por algum contratempo. A nação é bem evoluída e o povo bastante educado, dificilmente um comportamento rude chamava-lhe atenção — coisa que acontecia com certa frequência na américa, o que poderia justificar tantas mortes para sua ficha.

   E mesmo que, ele se sentisse liberto e vitorioso, ainda havia um grande vazio. A saudade e decepção caminhavam juntas.

   O cenário de Florença se repetindo mais uma vez.

   A televisão estava ligada num programa de talentos japonês. Não era de seu costume assistir tais coisas, porém a mantinha ligada em canais aleatórios enquanto estava sozinho. Uma jovem estava se apresentando, cantando uma bela música da qual Hannibal não prestou atenção no nome.

   "Se você pudesse me ver agora,
   Imagino o que você pensaria,
   Do meu eu, vivendo sem você.

   Eu ainda não consigo acreditar que nunca mais poderei lhe ver,
   Eu ainda não lhe disse nada.

   Não importa o quão assustador seja, eu não vou olhar para trás,
   Se no final de tudo, há amor.

   Todo mundo encontra o amor,
   No final."

   Ele parou de pintar o quadro, qual retratava o bosque atrás da Mansão Lecter, na Lituânia. O ambiente aonde costumava passar as tardes junto de Mischa. Inconscientemente lágrimas caíram de seu olho direito, sem que nem mesmo ele percebesse, durante a apresentação da jovem. Era demasiado lindo e doloroso o que aquela música simbolizava.

   Hannibal estava sentindo a falta de Will e também sofrendo de alguma forma por isso. Desde que soubera que Graham tentou tirar a própria vida, a vontade de se comunicar com ele tornou-se inquietante e imoral. Era arriscado e ele já não sabia quais seriam as reações que o mais novo poderia ter com um contato da parte dele.

   Havia algum sentimento mais forte do que toda a prudência em seu peito. E o seu coração, estava partido. Aquilo, era de longe, o que nunca desejou para Will. Um fim tão indigno e trágico para uma pessoa com um potencial enorme. O arrependimento de ter o deixado para trás se fazia presente.

   Eu te amei e te amei e te perdi.
   E isso dói como o inferno,
   Sim, isso dói como o inferno.

   O Will foi a única pessoa que conseguiu despertar um "quase amor", em Hannibal. Toda a obsessão, manipulação e sedução, eram tentativas desesperadas de fazer com que Graham ficasse por perto.

   Eu não quero que eles saibam os segredos,

   Eu não quero que eles saibam o jeito como eu amei você,
   Eu não acho que eles entenderiam isso, não,
   Eu não acho que eles me aceitariam, não.

   Seria injusto que o destino roubasse todas as pessoas que já gostou na vida. Mischa, Murasaki, Abigail e Will.

   Eu te amei e te amei e te perdi.

   E por um momento, naquele momento, nada mais importava. Ele precisava ver Will, o tocar, ouvir o timbre da sua voz novamente.

   Ele se levantou da cadeira de frente ao quadro que não concluiu, jogou o pincel que segurava em algum canto do cômodo e correu até seu quarto. Abriu a escrivaninha desesperadamente, procurando um papel adequado para uma carta. Prontamente ao conseguir achar, pegou qualquer caneta e começou a escrever.

   " Querido Will..."

The Broken TeacupOnde histórias criam vida. Descubra agora