1. A Missão
Entrei no quarto e observei a garota desacordada na cama, ela tinha hematomas por todo o corpo, seu rosto estava desfigurado pelo inchaço e pelo seu braço esquerdo estendido corria uma mistura de antibiótico, analgésico e sabe-se lá o que mais.
Mas, graças a essas drogas, ela mantinha-se estável, o que era um milagre; na realidade, foi por pura misericórdia que o milagre se fez e ela tinha sobrevivido a esse acidente.
Dei graças quando o entendimento de que ela não podia ser penalizada pelo acontecido foi unânime.
Voltei a olhar para seu rosto frágil, tinha visto esta cena por tantas vezes que eu até já tinha perdido a conta, mas, dessa vez, foi diferente: ela tinha sido abandonada.
Esse pensamento fez com que uma onda de compaixão pela garota estendida na cama me invadisse; fechei os olhos desejando encontrá-lo uma única vez, só uma vez.
Respirei fundo e o cheiro hospitalar penetrou por minhas narinas, éter, clorofórmio, produtos farmacêuticos, tudo junto, tudo de uma só vez.
Voltei a olhar o rosto da garota. Daphne, o nome da ninfa que foi o primeiro amor de Apolo, deus da luz e filho de Zeus, transformada nessa planta chamada Daphne.
A lenda de Daphne e Apolo é uma história de amor e repulsa que não surgiu por acaso, Apolo desdenhou a habilidade do deus do amor com o arco e se gabou de suas próprias vitórias. Então, o Cupido, por malícia, tirou da aljava duas flechas diferentes: uma feita para atrair o amor, outra, para afastá-lo. A primeira era de ouro e tinha a ponta aguçada; a segunda, de ponta rombuda, era de chumbo.
Com a flecha de ponta de chumbo, feriu a ninfa Daphne, filha do deus Peneu, e, com a de ouro, feriu Apolo no coração.
Sem demora, o Deus foi tomado de amor pela ninfa e esta sentiu horror à ideia de amar.
Apolo amou-a e lutou para obtê-la. Viu seus olhos brilharem como estrelas; viu seus lábios, e não se deu por satisfeito só em vê-los. Admirou suas mãos e os braços nus até os ombros, e, tudo que estava escondido da vista, imaginou mais belo ainda. Seguiu-a; ela fugiu mais rápida que o vento, e não se retardou um momento ante suas súplicas. E, mesmo ao fugir, ela o encantava.
Assim coavam o Deus e a virgem: ela com asas do medo; ele com as do amor. As forças de Daphne começam a fraquejar e, prestes a cair, ela invoca seu pai, para que ele mude suas formas, que lhe têm sido tão fatais!
Mal pronunciara estas palavras fora transformada em um loureiro, nada conservando do que fora, a não ser a beleza.
Assim, Apolo perde o seu amor e declara então que o loureiro seria sua árvore sagrada, jamais envelhecendo, sendo sempre verdes suas folhas, permanecendo, assim, eternamente jovem tanto quanto ele próprio.
E, para lembrar eternamente de seu grande amor, enfeitou sua lira e sua aljava com suas folhas e quando os grandes conquistadores romanos caminhavam à frente dos cortejos triunfais, usava-a como coroa para suas frontes.
E, essa Daphne era digna de seu nome e de sua lenda, pois, mesmo através da deformidade de seus machucados se podia notar a eterna beleza da ninfa.
Suspirei e fiquei feliz por ter sido escolhido para essa missão.
A porta se abriu e um jovem entrou, aproximou-se da cama e ficou de pé olhando-a por alguns segundos, sua respiração era exasperada e suas mãos fecharam-se em fúria, como se quisessem ,nesse momento, esmurrar alguém.
Fiquei ali parado fitando-o e tentando imaginar o que esse jovem seria dela, um irmão, um primo, alguém obviamente da família, uma vez que nesse estágio somente os parentes diretos tinham acesso ao paciente.