III

4 0 0
                                    

    Planos têm etapas e estas são complexas cada uma a sua maneira. Algumas vezes dão vontade de desistir de tudo e simplesmente mudar a estratégia. O plano de Natã, porém, era relativamente simples e já sabia qual seria seu primeiro passo mais óbvio: na escola, ele andava em trio, completado por Danilo e Alexandre. Quando Danilo e Natã descobriram que Alexandre queria ser advogado, este recebera diversas críticas e chacotas dos amigos. Não por praguejar contra a profissão ou mesmo se opor, mas em geral ninguém gosta de ver um amigo se afastar. Esse foi o primeiro assunto que ele levantou naquele fim de tarde ao telefone:
-Alexandre? Oi cara, tudo bem?
-Fala Natã! Que que manda?
-Em primeiro lugar eu quero me desculpar por nunca ter realmente demonstrado o respeito que sua escolha de carreira merece! –Houve uma pausa. Em seguida Alexandre respondeu com uma pergunta:
-Quantas garrafas de vinho você tomou Natã?
-Quero dizer que... Bom, eu preciso de uma ajuda sua cara! Como advogado, não como amigo... –Alexandre se levantou da poltrona em que estava sentado e passou a mão pelos cabelos:
-Ahh Natã, o que você andou aprontando cara? Por acaso voltou a quebrar tudo pela frente?? Já te falei sobre maturidade brother!! Quando é que você vai cresc...
-Não Alê!!! –Interrompeu o sermão do amigo, que sem dúvida duraria o resto da tarde. Em seguida explicou o que estava acontecendo, desde sua chegada ao vilarejo de Piltor, passando pela improvável experiência de assistir Charles tocar na noite anterior, o terrível acontecimento daquela tarde e finalmente a intenção que tinha de pegar para si a guarda de Charles.
Alexandre ouviu tudo em silêncio e com muita atenção. Em seguida prosseguiu em tom quase mecânico:
-Isso não é tão simples. Primeiro precisamos juntar provas das agressões: testemunhas, vídeos, fotos de marcas de agressão e o relato dos garotos. Mas nesse caso em especial, a primeira coisa que você podia tentar era pedir a guarda para o pai enquanto eu agilizo a abertura de uma denúncia e ação.
Natã achou ter ouvido errado, então pigarrou e franzindo o cenho perguntou ao amigo:
-Alê... Eu tô enganado ou você me mandou PEDIR a guarda do garoto para o pai dele??
-Natã, você disse que ele desdenha do filho, que o policial não se importa porque conhece a versão dele dos fatos. É claro que ele vê o menino como um peso, um estorvo... Então, você podia tentar "livrar o cara" desse peso. Depois quando o menino estiver fazendo sucesso, a gente manda um disco autografado pra ele!
Natã pensou um pouco. Parecia improvável que pudesse haver diálogo com o grande homem branco. Seria um teste e tanto para sua frieza. Foi então que Natã, olhando para a casa de Charles, enquanto falava com Alexandre, viu uma mulher loura, usando parte de um uniforme de faxineira, parar em frente ao portão da casa e começar a destranca-lo. Natã teve uma luz. Berrou apressadamente para Alexandre:
-TE LIGO DEPOIS! –Bateu o telefone de qualquer jeito na mesa e correu para fora. "É... Loucura não passa com o tempo...", pensou Alexandre desligando seu aparelho.
Chegando ao quintal, Natã gritou:
-Senhora!! ÊI SENHORA!!! –A mulher se virou franzindo o cenho e erguendo uma sobrancelha, enquanto Natã ia desacelerando para não assustá-la. Viu Sebastião sair apressado da frente da janela e dirigir-se à porta da sala, que se abriu e revelou o grande homem branco pronto para atacar. Natã foi mais rápido e estando a pouco mais de três metros de distância da mulher, ele começou a vomitar as palavras:
-VOCÊ SABIA QUE ESSE HOMEM ESPANCA OS MENINOS? EU VI ELE SOCANDO O ESTÔMAGO DO DE OLHOS AZUIS HOJE! O QUE VOCÊ É DELES?? VOCÊ É A MÃE???
A mulher ficou parada, demonstrando choque em sua expressão. Ia abrir a boca para dizer alguma coisa, mas Sebastião havia aberto o portão e já estava na rua.
-O QUE VOCÊ QUER COM A MINHA MULHER SUA BESTA!! QUER APANHAR MAIS?? –Natã não deu atenção a ele, apenas se virou para a mulher e continuou vomitando as palavras:
-A SENHORA É MÃE DOS MENINOS? ESSE HOMEM É UM MONSTRO!! ELE AGRIDE OS GAROTOS! VOCÊ PRECISA DENUNCIAR... –Mas Natã perdeu o chão quando Sebastião disse "Tiana, ENTRA!!" e a mulher de longos cabelos louros simplesmente baixou a cabeça e entrou. Lembrou-se do policial e o cabo. Sentiu-se sem pernas nem braços. Completamente inútil. "Polícia que não protege indefeso. Mãe que não defende sua cria.", pensou ele e repentinamente o pacato vilarejo de Piltor lhe pareceu o lugar mais maquiado e deplorável do mundo. Ele olhou para Sebastião que estava pronto para brigar mais uma vez. Natã deu de ombros:
-Você venceu! –Ele disse. "A batalha, cretino!", ele pensou. "Vai engolir cada cascudo que deu em seu filho. Eu JURO!!". E deu as costas para Sebastião, que praguejava contra ele, mas sequer ouviu suas palavras.
Pegou o telefone caído no chão. Apertou o redial e esperou Alexandre atender.
-Não tem conversa cara! Ah, e a mãe é um lixo também!!
-Nesse caso, comece a juntar as provas. Não fale com vizinhos, deixe isso para quando eu for aí. Por enquanto você pode filmar o que acontece na casa. Se conseguir dez segundos do garoto sofrendo algum abuso...
-Vou ter que esperar o menino apanhar de novo e ter a sorte de gravar a cena pra abrir um processo Alexandre?? –Interrompeu-o. O advogado respondeu rápido:
-Pode abrir uma denúncia Natã, em seu próprio nome, mas a probabilidade de ganhar é baixa! Precisamos que uma assistente social vá até aí. Hoje não é mais possível, já tá muito tarde. Tente flagrar alguma coisa. Vou me mexer por aqui e te aviso de qualquer novidade. Ok?
-Ok cara! A gente se fala... –E eles desligaram. Natã apagou as luzes de sua casa e levou um colchão para o quintal, para poder ouvir melhor qualquer barulho suspeito. Tinha a vantagem de o lugar ser muito silencioso, exceto apenas pelos grilos e alguns vendavais.
Posicionou a câmera com foco na casa de Charles, pronta para gravar, o que não garantia nada, mas era o que podia fazer no momento. "Logo isso vai acabar carinha! Te prometo!", pensou como se Charles pudesse ouvi-lo. Abriu a garrafa de café e encheu o primeiro copo da noite.
Enquanto bebericava o café quente e sem açúcar, pôs-se a admirar as estrelas. Tentava ver o que Charles via. Todos nós tentamos! Quem nunca olhou o céu estrelado de verdade, e tentou entender sua lógica? O porquê e o pra que. Natã nunca fora tão filosófico na vida como naquele momento. Podia ouvir algumas notas da canção de Andrômeda. Como era linda e, por Deus, como era complexa. Estava tomando mais um gole de café quando se levantou e foi olhar o foco da câmera. Seus sentidos se aguçaram no momento em que bateu os olhos no visor do aparelho: alguém estava se movendo dentro da casa, depois de quase quatro horas de escuridão e silêncio. Ele não respirava nem piscava. Teve um confuso sentimento entre esperança e repulsa, após perceber que estava "desejando" ver Charles apanhar. Focou bem a câmera, começou a gravar e ficou a postos, como um maratonista aguardando o tiro de largada. Assim que visse uma cena de violência, deixaria a câmera gravando e voaria até a casa de Charles como um raio.
Estava pronto para tudo. Para quase tudo na verdade. Sentiu outro misto terrível de angústia com extrema felicidade quando viu Charles sair pela porta da sala e atravessar o gramado em direção ao portão, seguido por um Adriano que carregava o que lhe parecia um sanduíche feito com pão de forma preso na boca e outro na mão esquerda.
Ele assistiu o garoto fechar a porta com muita cautela e seguir o irmão, que já atravessava a rua com seu par de olhos azuis, parecendo olhos de gato na noite iluminada apenas pela lua e as estrelas.
Natã abriu o portão e recebeu Charles com um abraço que não foi retribuído, pois Charles não tinha o costume de abraçar ninguém realmente, há exceção única de Adriano, a quem em geral, mais se agarrava como sendo seu porto seguro do que dava um abraço propriamente dito. Natã não se importou, sentia ainda o misto da grande agonia de estar recebendo um menor de idade, cujo pai queria sua cabeça, com o imenso sentimento de alegria em ver o "carinha" bem e disposto, indo visita-lo por conta própria.
Ter os sentimentos misturados é uma coisa terrível, pior ainda quando não se está nem um pouco habituado a nenhuma das duas ou mais sensações. Natã estava travado naquela situação tão cheia de conflitos. Seus movimentos eram mecânicos e ele não estava assimilando nada realmente, apenas reagindo à situação.
Assim que Adriano passou pelo portão, eles correram para dentro do chalé e Natã, tenso como uma pedra, fechou a porta e as cortinas, por onde deu uma última espiada na casa do outro lado da rua.
-Eles nunca saem do quarto à noite! –Disse Adriano fazendo Natã sentir um leve tranco de susto. Ele se virou para o garoto que estava acabando de engolir seu sanduiche. Charles estava estático e focado na flauta que Natã tinha posto em seu estojo com tampa de vidro transparente sobre uma estreita prateleira na parede.
-Então... Anh... –Começou tentando por as idéias em ordem, -Bem, quer dizer que todas as noites vocês saem pra passear?
Adriano acabou de engolir seu lanche e em seguida se pôs a arrancar pedaços do outro e tentar pôr na boca de Charles, que permanecia imóvel, como se sequer estivesse sendo tocado.
-Ele costuma sair e olhar estrela... Trovão, mato... –Respondeu Adriano, -Meu irmão sempre fez isso... Ele olha as coisas e eu olho ele!! –Disse como um pai que acaba de declarar o quanto seu filho é importante e abriu um sorriso. Natã conta que tentou esconder até de si mesmo o que sentiu ali, mas sempre afirmou que aquele fora o sorriso mais sincero e bonito que já vira na vida. Pigarreou e perguntou para o garoto que insistia, sem sucesso, em tentar colocar o pedaço de pão na boca de Charles:
-Porque seu pai bateu nele hoje? –Adriano parou o que estava fazendo e olhou Natã com uma expressão tão sombria e cheia de ódio e rancor que ele sentiu-se em total sintonia com o garoto no mesmo instante:
-Ele bate todo dia! Meu irmão não precisa fazer nada!! –Os olhos e o rosto ficando rapidamente muito rubros, -Aquela hora foi só porque ele não queria almoçar... Muitas vezes ele nem dá janta pra gente e hoje bateu em Charles porque ele não queria comer! –Estava agora lutando para não deixar as lágrimas saírem. Percebendo isso, Natã sem experiência nisso, não sabia o que dizer e em seu conflito de sentimentos novos, apenas balbuciou:
-Você quer suco? Tem de abacaxi e...
-Leva a gente embora moço!! –Cortou-o Adriano, -Tira a gente daqui! Por favor!!
Natã sentiu o pescoço e rosto ferverem por dentro. Era exatamente o que pretendia fazer com Charles, mas não havia pensado sequer por um segundo em seu irmão. Foi aí que percebeu que arrancar Charles de Adriano seria tão cruel quanto à rotina que ambos aguentavam. Até hoje Natã conta que a coisa da qual se arrepende em toda essa história, foi à pergunta que fez para Adriano em seguida. "Não sei o que me deu... Sei lá cara... Acho que eu só não estava pronto pra uma situação daquelas". Adriano por sua vez, conta que foi doloroso ouvir Natã perguntar se "Sentiria muita falta caso levasse só o Charles?", ainda mais assim à queima roupa. Adriano mais tarde, quando muito pressionado para detalhar essa situação, revelou que "essa foi à segunda coisa mais dolorosa que já tive de suportar na vida!". Mas ali na hora, e isso é lembrado por Natã em toda oportunidade, "ele muito masculamente engoliu o choro e declarou enfaticamente que NÃO!!!".
Claro que Natã não só não se convenceu, como ia tentar contornar seu frio questionamento, mas ele insiste mais ainda na "macheza" de Adriano, que disparou à falar muito e muito rápido para não ser interrompido:
-Então leva meu irmão dessa vida mas antes disso deixa ele assoprar aquele cano de ferro por que acho que ele não comeu o dia todo pensando nisso, geralmente ele almoça e hoje não comeu nada então deixa ele assoprar aquele negócio moço, senão pode ficar doente!!
Natã pensou em se desculpar, pensou em oferecer suco de novo, ia perguntar se ele preferia de maracujá ao invés de abacaxi, mas ao abrir a boca, as palavras que saíram foram:
-Tenho uma coisa pra vocês! –Foi até a flauta, apanhou-a e entregou para Charles, que a pôs na boca e soltou notas e acordes pausados. Não existem gravações desses sons, mas pode-se dizer que era a maneira de Charles "cantarolar" uma melodia qualquer.
Naquela noite, Natã ainda não tinha ideia do que Charles realmente estava fazendo. Desconfiava que o baixinho tocasse "para" as estrelas. A verdade é que ainda estavam arranhando o pico do iceberg com uma agulha de costura, o que é perfeitamente aceitável, pois como é possível imaginar que o garotinho pudesse ir tão infinitamente longe.
Natã não teve tempo de editar os vídeos naquela tarde, então abriu a mochila e apanhou os documentários em formato DVD sobre a Via Láctea. Colocou um sobre buracos negros, retirou o som do vídeo, apagou a luz e ligou o gravador de áudio. Ainda hoje tanto ele quanto os admiradores de Charles se lamentam e irritam com o fato de a câmera de vídeo ter sido esquecida do lado de fora da casa. Ainda assim, nem esse nem nenhum outro fator muda a magia que decorreu naquela primeira noite de gravação. Em meio ao breu na sala, começaram aos poucos a surgir as constelações e nebulosas pela parede, simultaneamente com as notas de Charles.
Mesmo após as edições e produções que aconteceram mais tarde nesses solos, ainda há uma aura única em torno daquelas gravações originais e sem acompanhamentos ou efeitos. Dizer que sua magia é hipnótica pode parecer vago. Creio que afirmar que sua energia é catártica seja mais científico.    

Charles Mártir E O Segredo Do UniversoWhere stories live. Discover now