A última casa

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**PARTE 1**

O coche balançava ruidosamente naquela manhã nublada de inverno. O advogado disser que a estação não acabava nos lados do norte, só amainava um pouco em Julho. "Mas não se preocupe, é mais ou menos a mesma temperatura que Leeds", disse ele, com bom humor.

O advogado não parecia do tipo bem humorado. Tinha um semblante sério e compenetrado, e ela tentava entender o motivo daquele descompasso entre como ele se apresentava e o jeito com o qual falava.

- O conde é uma pessoa muito calada. Um pouco orgulhoso, mas ele aceitará seus cuidados. Foi ele mesmo quem pediu uma enfermeira.

- Uma enfermeira como eu?

- Ele não se importa com uma noviça cuidando dele – apenas precisa de alguém competente. É isso que o conde preza.

"E alguém com uma vontade de ferro. Uma cabeça-dura como eu", pensou a jovem.

Não era usual uma noviça sair do claustro para trabalhar fora das paredes do convento. Mas Adele era diferente.

Adele não se tornou noviça porque teve vontade ou por inspiração. A jovem não era herdeira, filha de família rica ou alguma donzela que deu um "mau passo" e fora ao convento para se corrigir. Adele fora abandonada numa roda de enjeitados em Leeds, envolta em panos brancos, chorando muito. As freiras cuidaram da menina, ainda com o cordão umbilical, e a deixaram no bercinho destinado aos pequenos órfãos.

As freiras sabiam que Adele, cujo nome fora dado por uma das madres francesas católicas que visitaram o convento, jamais teria a chance de ser tutelada por alguém – e seguiria o honroso, mas solitário caminho dos órfãos: tornar-se mais uma criada ou engrossar a lista de operárias nas fábricas. Com expressivos olhos verdes, cabelos cacheados que sempre se desprendiam da trança e um sorriso tímido, era a única criança negra do orfanato. Ninguém tutelava crianças negras. 

Logo começou a se interessar pelo trabalho das freiras. Educar as crianças da região, ajudar a cuidar dos enfermos, cozinhar para os órfãos mais novos... A madre superiora logo viu que a pequena Adele poderia encontrar seu caminho sendo irmã de caridade, protegida da maldade humana e das maledicências do povo da cidade.

No entanto, a menina tinha um espírito lutador e não temia ser teimosa e insistente, em especial quando se tratava do trabalho como enfermeira. Quando a jovem completou 18 anos e passou a ser tratada por todos como noviça, começou a trabalhar no pequeno hospital comandado pelas irmãs. O médico principal, dr. Bartholomew Martin, era um tipo competente e prático, com métodos de trabalho pouco usuais e um gênio difícil. As freiras do convento de St. George não aguentavam muito tempo suas mudanças de humor. Somente Adele, chamada de "irmã Adele", aturava o gênio de dr. Martin. Pior, ela o desafiava e replicava, com respostas nada adequadas a uma religiosa.

- Está fazendo ridículo! Receite o bendito chá, não vai doer em seu orgulho, doutor!

- Chá! Irmã Adele, quer mesmo que ofereça chá? Estudei anos de minha vida, enterrei minha cara nos livros pelo bem dos meus pacientes para terminar meus dias ouvindo conselhos de uma leiga? De uma criatura que mal saiu dos cueiros e me sugere crendices populares?

As outras freiras ruborizavam quando dr. Martin dizia algo sobre "cueiros", mas Adele parecia não ter ouvido nada.

- Pois não são essas crendices que ajudam a produzir os remédios que o senhor receita aos teus pacientes? Pois bem, prescrever um chá não fará mal algum!

Os dois discutiam, mas frequentemente conversavam de forma amistosa, sempre falando sobre medicina. O médico via na noviça uma protegida, uma aluna talentosa a quem ele poderia ensinar, mesmo nos limites do convento. Adele via no médico uma referência, apesar de suas excentricidades. Sua experiência e método eram admirados pela jovem.

A Fera do Norte [DEGUSTAÇÃO]Onde histórias criam vida. Descubra agora