Manoela

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Manoela despertou, como sempre, às 4 da madrugada. Sentia uma queimação estranha no estômago como nunca sentira em seus 90 anos. Levantou, tomou um copo d'água e voltou para cama. Sabia que se ligasse para qualquer filho ou neto, imediatamente seria socorrida, mas preferiu esperar o sol raiar e a farmácia abrir. Não queria incomodar.

Às sete horas, já na farmácia, achou estranha a forma do atendente dizer que não era grave. Retornou para sua casa bem próxima dali, se recusando a ser acompanhada, ainda conseguia andar bem com sua bengala e não abria mão da sua autonomia. Mal sentou em seu sofá e logo começaram a chegar os filhos aflitos. Ela detestava passar por isso, mas entendeu que o farmacêutico ligara para um deles.

Não recusou ajuda desta vez, sabia que algo incomum acontecia, mas estava preparada. Apanhou sua malinha de hospital, sempre deixava pronta para alguma necessidade; olhou o vestido e as 'roupas de baixo' impecáveis, separadas para seu enterro. Cada filho tinha sua tarefa determinada, não queria correria, não queria choradeira, não queria gastos supérfluos, estava tudo sob controle. Correu os olhos pelo quarto ouvindo o falatório de mais filhos que chegavam, ajeitou a colcha da cama, os frascos de perfumes que ganhava, mas que só usava como decoração da sua penteadeira. Abençoou o retrato da neta, para ela sempre iam suas melhores orações. Amava a todos, mas esta era a mais especial, inclusive por sua patologia grave.

No hospital percebeu que fora levada para um quarto diferente, onde viu mais aparelhos que o normal; como estava cansada, não lutou contra a sonolência inesperada que a dominou. Logo ela que não dormia durante o dia, pois tinha mais o que fazer, sonhou! Sonhou muito e, cada vez que voltava do cochilo, reconhecia o rosto de um ente querido em sua companhia, velando seu sono. Imaginava a família aglomerada na porta do hospital revezando a entrada, mas desta vez não achou ruim. Sua mente reagia de forma diferente e mergulhava no tempo...

No tempo da infância, das histórias que seus pais contavam da fuga da grande guerra para o Brasil. Lembrou que seus irmãos eram espanhóis e ela a primeira a nascer em solo brasileiro. Reviveu a dificuldade dos pais em aprender uma língua diferente e começar vida nova num novo mundo. Sua memória entregou-lhe cheiros que ela adorava sentir: da comida no fogão à lenha, da carne de porco curtida na banha, do café torrado e moído na hora. Quantas memórias afetivas foram resgatadas neste dia: o olhar carinhoso do pai, a mãe penteando sua cabeleira negra... Sua primeira cavalgada e a sensação de dominar cavalo bravo pisando fundo no estribo; a alegria de alimentar porcos e galinhas; o cansaço na colheita do algodão; a preocupação em proteger o fruto do café na geada e, principalmente, o aparato usado para se proteger na colheita do arroz; a labuta mais perigosa da roça por causa das cobras que se aninham nas touceiras.

E teve flashes da mocidade: dos terços de São João, das caminhadas até a igreja, das modas de viola, dos tios contando histórias de lobisomem no terreirão e das inúmeras vezes em que, deitada em sua cama, na imensa escuridão do sítio, se iluminava de raios de luar e brilho de estrelas. Teve as suas preferidas, enquanto não mudou para a cidade e conheceu um céu anuviado de poluição.

Sem saber o motivo, avistou seu calçado mais usado naquela época: as botinas, ou sapatão como são chamadas por gente da roça. Ela nunca calçara um salto alto, nem sapato de cristal, seu calçado oficial foi o sapatão. Ele dava firmeza pra enfrentar a terra batida, pra montar no cavalo com destreza, pra se proteger das ervas daninhas e dos animais peçonhentos; bem como fixar as barras das calças que as mulheres usavam por baixo da saia.

Resgatou a vaidade de moça que ela tinha esquecido. Os cabelos longos, muito negros, a cintura fina, as pernas firmes nunca expostas e a pele morena que o sol maltratou. Depois reviu seu príncipe encantado chegando numa carroça e despertando-lhe a paixão. Casaram, construíram um lar, tiveram filhos na alegria de seu castelo.

ManoelaOnde histórias criam vida. Descubra agora