Liberdade
Dor, a primeira coisa que sentiu ao abrir os olhos. Sarah ainda processava o que acabara de acontecer quando sentiu uma dor diferente na perna, pior que nas muitas outras partes do corpo. Se estava quebrada, ela nunca descobriu, pois se levantou e voltou mancando para casa disposta a esquecer e seguir em frente.
Se alguém perguntasse ela omitiria que cinco meninos duas vezes maiores que ela a empurraram, fazendo sua perna bater violentamente no meio fio. Sarah diria que havia escorregado, ou inventaria uma desculpa melhor.
Ignorando toda a dor que cinco animais causaram ao jogá-la no asfalto, chamá-la de "sapata anormal" e chutar suas costelas até que parasse de gritar e desistisse da vida, Sarah voltou para casa e chorou sozinha, como as campeãs faziam.
Por mais que tudo nela estivesse ferido, não só na parte física, ela sabia que aguentar isso tudo valia a pena por uma pessoa. Karini, seu primeiro beijo, seu primeiro contato sexual, seu primeiro amor. A menina ruiva, baixinha, mais branca que leite e dona do mais belo par de olhos verdes que já havia visto.
No dia seguinte ao ataque ela só queria saber se Karini estava bem, era doloroso pensar que sua garota poderia estar machucada. Mas, para sua alegria, ela chegou na escola sã e salva, apenas assustada e preocupada.-Sarah nunca mais ouse…-Começou Karini, mas foi interrompida.
-Estou bem, só quero saber se eles não foram atrás de você.- Sarah disse e se apoiou na parede, ainda com muita dor.
- Não banque a heroína, nunca mais. Tudo que conseguiu com isso foi uma surra...-Ela fez uma pausa, olhando para baixo. -Sim, eu vi eles te jogando no chão. Me perdoa por não ter ido te ajudar, eu entrei em pânico.Sarah levantou uma sobrancelha e abriu um sorriso sarcástico. Karini nunca foi de admitir que havia perdido o controle.
-Você entrou em pânico? E admitiu isso?- Sarah riu, fazendo Karini rir também.- E ainda pediu perdão?
Elas riram, em parte por ser realmente engraçado, mas muito mais para sentirem que estava tudo bem novamente. Depois olharam em volta e deram um beijo discreto, antes de cada uma seguir para seu lado.
Nenhuma das duas sabia a razão de se gostarem tanto, elas eram diferentes em quase tudo. Sarah sempre tinha sido a menininha da família, a queridinha dos professores e nunca sonhara em fazer algo minimamente errado. Até o dia que roubou uma cerveja de sua mãe e decidiu ir beber na quadra abandonada, perto de sua casa. Um lugar esquecido por qualquer um com juízo. Foi lá que conheceu Karini, ela pediu um gole da cerveja e elas nunca mais se desgrudaram.
Já Karini, nunca foi o orgulho dos pais, expulsa de quatro escolas por seus “problemas de comportamento”. O caso não era de uma menina mal educada ou rebelde que sempre dava um jeito de estragar tudo, era um diagnóstico. Diagnóstico de uma menina com sérias crises de bipolaridade, que nunca havia conseguido um amigo de verdade por causa disso. Até resolver ir para aquela quadra.
Mesmo sendo tão diferentes, no fundo sabiam que o simples fato de resolverem ir para o mesmo lugar, no mesmo dia e na mesma hora já as tornavam uma só, antes mesmo de se conhecerem.
Naquele mesmo dia, com Sarah mancando por aí e Karini totalmente desligada da realidade, uma ideia “maluca e maravilhosa” surgiu das sombras. Enquanto lanchavam, sentadas no chão do pátio o mais afastadas possível, Karini pegou as mãos de Sarah, olhou em seus olhos e depois de um longo silêncio disse:-Vamos fugir!
-O que?- Perguntou Sarah sem saber se devia levar aquilo a sério.
-Só por uma noite meu benzinho.- A ruiva implorou, fazendo charme.
-Jura? Benzinho? Você bebeu, Karini?
-Precisamos de liberdade!- Abriu um sorriso no rosto, como todas as vezes que sonhava acordada. - Vamos para algum lugar onde podemos ficar juntas de verdade, sem precisarmos nos esconder de ninguém.
-Ta chapada? Imagina se minha mãe me pega saindo de casa escondida. Além disso teremos muita liberdade quando nos formarmos, teremos todo o tempo do mundo.
-Estraga prazeres. Vamos ao menos falar sobre isso, me deixa ao menos fantasiar. Eu não aguento mais essa vida…Sarah sabia que ela não iria parar de pensar nisso, então disse que naquele dia sua mãe não estava em casa e convidou Karini para ir passar a noite. Desde que ela saísse de manhã bem cedo.
Realmente era horrível viver sendo atacada por ser um pouco diferente, ter que amar alguém escondido de tudo e todos. Para sua surpresa começou a cogitar a possibilidade de realmente fazer aquilo. Se não podia ser ela mesma, então, afinal, quem era Sarah?
À noite Karini bateu três vezes no portão e cinco minutos depois Sarah foi abrir, era uma medida de segurança que tomaram para que passassem despercebidas pela vizinhança. Ela entrou saltitando, com um sobretudo que cobria seu corpo do pescoço ao pé, mesmo que a noite fosse uma das mais quentes do ano.-Que frio!- Brincou Sarah, vendo as roupas que sua querida vestia.
Karini então desabotoou botão por botão até o sobretudo cair de seus ombros e revelar seu corpo cheio de curvas, coberto apenas por uma calcinha de renda e um sutiã que não combinava. O que era bem a cara dela, não se importar com suas roupas, íntimas ou não.
-O que é isso?- Perguntou Sarah, admirando seu corpo. Metade dela estava nervosa e metade queria tocá-la.
A ruiva seminua deitou no sofá.-Desenhe-me como uma de suas francesas.- Falou com seu sorriso de canto de boca, fazendo menção ao filme que a namorada mais gostava.
As duas se olharam por um tempo, até Karini ficar impaciente e se levantar, puxar a companheira para si e beijá-la. Já haviam se relacionado intimamente antes, mas dessa vez, sentiam que eram uma só novamente.
Aquela seria sua última noite especial.
Ao amanhecer, elas se despediram com um beijo. Sarah não podia medir em palavras o quanto amava Karini.-Você ainda quer fugir?
-Como assim?- Perguntou Karini com uma esperança cautelosa.
-Vamos fugir. Amanhã.Se beijaram mais uma vez, disseram o quanto se amavam e Karini seguiu seu caminho.
Caminhando até em casa, sentindo a esperança se esvair, a cabeça de Karini estava cheia de pensamentos. Claro, não seria normal se não estivesse. Mas, seus pensamentos eram mais sombrios, pensamentos que ninguém deveria ter.
Karini não queria fugir da cidade, ela queria fugir de si mesma e da própria história.
A verdade era que, não só na escola ela enfrentava problemas, em casa podia ser muito pior. Seu pai uma vez a vira beijando Sarah, enquanto as duas matavam aula para tentarem ficar juntas. Desde então, a batia todos os dias, quando chegava do trabalho. A mãe era álcoolatra, guardava um estoque de todas as garrafas, de todas as bebidas que se podia imaginar, e não passava um dia sem desmaiar de bêbada.
Sarah nunca soube disso.
Naquele dia, depois da melhor noite que já tiveram, Karini chegou a conclusão que aquilo acabaria muito mal, ou para uma só, ou para as duas. Então, ela decidiu que aquilo acabaria mal apenas para ela e ninguém mais. Se fugissem, a polícia as acharia antes que pudessem começar a vislumbrar qualquer indício da tão sonhada linerdade. Assim, a mãe de Sarah descobriria também, e mais uma vida seria arruinada.
Ao chegar em casa pensou em cada detalhe do que aconteceria a seguir, esperou sua mãe apagar depois de muitas doses-mesmo ainda sendo manhã- Olhou para o relógio e teve certeza de que o pai não chegaria rápido o suficiente. E, ao invés de guardar o whisky da mãe no armário, como sempre fazia, o levou para o banheiro, junto com uma garrafa intocada de vodca.
Ainda pensou em fugir, o pouco tempo de liberdade que teria valeria a pena para ela, mas e para Sarah? Ir sozinha não fazia mais sentido, fazer qualquer coisa naquele mundo horrível não tinha graça sem a menina que ela amava… Mas não podia amá-la mais, pelo bem dela. Karini não podia mais viver sem poder amar.
Depois de levar as bebidas, vasculhou cada centímetro da casa atrás do estilete que usava em suas esculturas e o achou dentro de uma caixinha embaixo da cama, como se estivesse ali escondido, esperando por esse momento.
Pensou mais uma vez nos pouco momentos que teria ao lado daquele sorriso meigo e apaixonado, mas, foi pensando nele que Karini engoliu todo o álcool que conseguia. Sentiu a bebida descer queimando, entorpecendo sua mente, trazendo à tona todas as vezes em que Sarah bebia e a beijava com a boca quente. “Um último porre em sua homenagem." Ela pensou.
Antes que desistisse, pegou o estilete, cortou o pulso esquerdo. Na vertical, como já sabia a muito tempo. Depois de aceitar a dor, fez esforço para cortar o pulso direito, mais devagar do que o anterior. Sentiu uma dor que quase se comparava a dor de estar deixando tudo para trás. Percebeu que esse era o problema que tinha ao tentar melhorar a dor da alma com a dor física, chegava tão perto, mas nunca o suficiente.
Não demorou muito para que sua visão ficasse turva. Ela se deitou no chão, mesmo conseguindo ficar de pé. Ela se deitou pois, pela primeira vez, sentiu o que era a liberdade. E descansou.
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Liberdade
Short StoryConto principal- Karini e Sarah são um casal que precisa desesperadamente de liberdade, mas a maneira que conseguem isso não era esperada por ninguém. Decisões precisam ser tomadas, o amor nem sempre é tudo. "Dor, a primeira coisa que sentiu ao abr...