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Acho que esse lance de "habitar o próprio mundo" diz respeito a ter uma visão particular sobre as coisas. Claro que a coletividade, os caminhos por onde você andou, vão auxiliar na construção desta visão. O segredo constitui em saber ordenar os pedaços de vida da melhor maneira possível. Bem, como assim? Primeiro, sempre levando em conta o quão liberto se pode ser, mesmo vivendo em coletividade. Quem organiza o seu dia? Quem realmente tem a última palavra? E não me refiro a ser mandado pela mulher ou pelo patrão. (Isso também, claro. Mas não me refiro exclusivamente a isso). Quero dizer, você tem conhecimento sobre, pelo menos, parte da estrutura que guia a sua vida, que te governa? Sistema econômico, político, moral e por aí vai? Quer ter um trabalho pra ganhar grana, mas nunca pensou na origem disso tudo. Amigo, alguma coisa está errada com você, acredite. Quando tudo parece absurdamente comum e real, aí está o verdadeiro perigo.
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O importante é tentar controlar pelo máximo de tempo possível a própria vida. Nesse caso, a tentativa é a própria vitória, pois, para tentar isso é necessário tempo. Quem tenta já vem controlando, em parte, o próprio tempo, mesmo que por um curto período. Pessoas frustradas têm problemas com a própria rotina. Precisam de finais de semana, feriados, férias e o que for para se sentirem vivas. Jogos de futebol são todos iguais. Viva a sexta-feira! Férias, oba! Besteira. Passam a maior parte do tempo frustradas com o que fazem. Não trilham um caminho próprio. Sei lá. Uma pessoa que vive só de tempos em tempos não pode estar saudável. É preciso estar vivo nas horas de lazer e nas horas de trabalho. Nas horas de sono e nas horas acordado. É preciso se sentir vivo, mesmo estando entediado. Ou com frio.
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Dez doses, cinco para cada um, somadas à garrafa de vinho, foram o suficiente para aquela noite fria. Até então. Saímos do local completamente bêbados. Fomos até o carro. Abri uma das portas e saquei nossa segunda garrafa de vinho. Dois litros de vinho vagabundo. Não iria acabar bem. Ligamos o som e ficamos olhando as pessoas irem embora depois do final do último jogo. Umas garotas gordas pararam perto da gente e começaram a conversar. Meu sábio amigo disse: "Ó". Ficamos olhando. Elas olharam. Eu disse "Oi". Elas viraram as costas e se mandaram. O que mais poderiam fazer, não é verdade? Saímos dali ainda no começo da garrafa. Paramos, mais ou menos na exata metade do caminho que nos levava de volta ao camping. Estacionamos na beira da estrada e saímos, aumentando ao máximo o volume do som do carro. Nada por perto. Bem, a polícia nos seguiu da cidade até ali, dá pra acreditar? Cruzaram vagarosamente por nós, com uma lanterna ligada nas nossas caras e sem falar uma palavra. Como mulheres velhas diante de crianças malcriadas. Condenando suas atitudes apenas com olhares enfurecidos e de conotação moralista – seja lá o que isso possa significar. Não pararam. Nossa festa seguiu. "Se alguém, do nada, viesse e te desse um soco, eu seria o primeiro a partir pra cima dele". "Claro, eu também faria o mesmo por ti, não tenha dúvidas". "Uma vez eu coloquei duas luvas, uma de lã e outra de couro, e mesmo assim as mãos gelaram no guidão da moto. No inverno não tem jeito!". "Sim, não tem o que fazer. Pés e mãos ficam sempre congelados numa situação dessas". "Cara, eu vi uma luz piscando no céu". "Onde?". "Ali, ó". "Não vejo nada". "Bem, mas estava ali". Eu não lembro exatamente quando decidimos sair dali e finalmente voltar ao camping. Tudo o que me lembro é de destruirmos o campo de futebol do lugar com o carro. Zerinhos. Sim. Pelo menos metade daquele campo teria que ser refeita. Acontece. Enfiamos o carro numa arvore ao lado da cabana. Nada muito sério. Meu amigo me disse: "Vou tentar dormir na casa dela". Respondi: "Tudo bem". Ele entrou no carro e sumiu. Fechei a porta da cabana. Muito frio mesmo. Bêbado. Fui para o quarto onde dormiria. O filho da puta não tinha trazido cobertas. Meu deus. Deitei vestindo calça, jaqueta e botas. Não adiantou. Não dormia. Tirei todas as roupas da minha mochila e coloquei-as ao meu redor. Cobri-me com uma toalha. Nada. No final, acabei me cobrindo com um colchão que peguei no quarto ao lado. Criatividade é tudo nessa vida. Na manhã seguinte acordei com meu amigo me chamando e dizendo que teríamos que ir nos desculpar pelo que fizemos no campo. Fomos, com a maior cara de pau do mundo.
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A vida perdeu muito de seu sentido original. As noções de razão, progresso, lucro acabaram por subtrair muitas coisas do mundo e da vida. O mercado, inclusive, sabe aproveitar muito bem o vácuo deixado pela falta do misticismo, nos empurrando parafernálias tecnológicas que deixariam a vida mais "fantástica". Estamos perdendo uma de nossas mais notáveis características: o fascínio verdadeiro pelas coisas. E colocamos em troca um tapa buracos que está longe de ser um concorrente à altura desta tão especial característica: o fascínio idiota por enredos fantasiosos e superficiais. Tudo o que não nos conecta com o universo, eu considero superficial. Franquias de super-heróis, por exemplo. Ou as aventuras de um jovem bruxo não sei quando e não sei onde. Por favor. A religião deixou de ser mística para se tornar uma mera instituição. Muito disso é culpa do cristianismo, não tenha dúvidas. A ideia de um único deus, uma única razão, uma única forma de ver as coisas é a maior inimiga de uma consciência formada misticamente. O misticismo requer interpretação constante de todas as situações que estão diante nós. É tentar amarrar todos os acontecimentos a um plano superior, não superficial como na fantasia cristã, mas algo que realmente nos conecte uns aos outros e ao universo. O moralismo é, justamente, a ausência de interpretação. É uma resposta pronta para tudo. Sem exercício de uma sutil inteligência, qualquer um pode se tornar um homem bom e ir para o céu, como se diz. Um pouco de vontade e muito de idiotice é o que basta. Coloque o cabresto e mande ver na burrice. Mande ver mesmo, sem dó.
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Notas Xamânicas
General FictionA improvável mistura entre motos, bebedeiras e reflexões de cunho filosófico e místico: assim podemos resumir o livro de estréia de Jonivan de Sá. Escrito em um estrilo bastante direto, agradá diversos públicos, na medida em que expõe reflexões c...