Enquanto morro, penso na vida na Terra

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Quando me desconecto da estação, sei que vou morrer. À deriva na escuridão do Espaço, sozinho, como se já estivesse morto. Enquanto morro, penso na vida na Terra.

Infelizmente, o primeiro sentimento que me acomete é o arrependimento. É tão negativo que não sei se
o arder dos meus pulmões é só pela dificuldade de respirar ou é também pelo amargo do coração. No fundo, sei que o meu corpo desiste de si mesmo depois de descobrir aonde cheguei com tanta pressa. Tanta sede de viver o futuro improvável que me deixou seco. Desidratado.

Nós, seres humanos, somos os únicos responsáveis pela nossa ruína interna. Nós cobramos demais, com
velocidade demais, insistentes demais. Queremos prazos tão apertados quanto às calças e os sapatos que vestimos. Abrimos mão do conforto porque vemos mais beleza em prender a respiração para caber num vestido, numa roupa, num lugar, ao invés de vivermos a vida que temos, aceitando o que somos e para que viemos. Somos estúpidos.

Temos tanta pressa. Pra nada. Possuímos uma expectativa de vida relativamente longa, tudo isso para apostarmos entre nós mesmos quem chega "lá" primeiro. Detalhe: nós nunca sabemos exatamente o que "lá" significa. Não conhecemos o fim da linha, e nos apressamos tanto por ela. Como se estivéssemos numa corrida para ver quem vive primeiro. Mas a questão é que já estamos vivendo enquanto corremos. Me pergunto se ser mais hábil em Matemática do que os meus amigos me ajudou a
ser melhor. Se entrar de primeira na faculdade desejada me fez viver mais. Não pareço mais vivo agora.

Tanta pressa pra atropelar a própria vida. Pra morrer. Pressa pro fetichismo mórbido que é esse desejo
de fuga que alimentamos durante uma vida inteira. E o que seria uma vida inteira, aliás? Me sinto
partido, porção do que deveria ter vivido ou aproveitado.

Nestes segundos de agonia, de morte lenta quase proposital, como se este fosse o único momento em
que pude pensar durante a vida inteira, percebo outra coisa sobre viver do jeito que julgamos certo. O
tempo passa, mas a vontade não. Viver com pressa, pressionado, irrita. Porque nos obriga a ser ingratos.
Nós gostamos do inalcançável. Os nossos sonhos perdem a graça quando os conquistamos porque, afinal de contas, já não parece tão longe de nós - não gostamos do que está perto e presente, já percebi
isso. Depois de uma meta, há outra. E a pressa com pressão só aumenta. A sede de ser melhor nos seca
por dentro - e não a vemos porque tudo o que importa está por fora.

Por que tudo tem de ser tão difícil? Por que a gente nunca pode agradecer e sentir que vivemos aquilo
que queremos viver? Por que parece proibido gostar do que temos e de quem somos?

Eu gosto de quem sou, e mais ainda daquilo que eu sabia que poderia ser se não tivesse tanta pressa. Se
eu tivesse parado para apreciar a minha vida, a minha família, os meus amigos, os meus dons inúteis e a minha rotina decorada, talvez estivesse inteiro agora - nenhum trocadilho com o fato de o meu corpo se desfazerá no Espaço.

Esta, meus amigos, é a vida na Terra. Nascemos crus, crescemos esperançosos, viciados no futuro,
negligenciando o que vivemos, querendo fugir da vida e de nós mesmos. Vetamos o que sentimos, o que somos, como somos, por que somos, e o que seremos. Vetamos tanto até sufocar, até não restar
opções, para depois nos queixarmos da falta delas. Nos permitimos normalizar toda essa humilhação,
essa Ode à Desgraça que parece parte da vida mas não é. Se sentir incapaz depois de viver tanto,
desacreditando em fatos empíricos de que sobrevivemos aos nossos piores dias não é viver. Não é!

Ainda estou morrendo e nunca estive tão vivo quanto agora. Nenhuma tentativa de fazer poesia, eu juro. Mas é esta a nossa incoerência preferida. Gostamos muito de levar choque só para sabermos se vamos ser eletrocutados de verdade. Não é coragem, é burrice.

Os meus pulmões ardem mais um pouco, ao passo que pareço fluar mais rápido, como lixo espacial.
Ainda dá tempo de contar quantas vezes desrespeitei o ritmo da minha vida. Sempre quis dar o passo
maior do que a própria perna. Penso em quantas vezes quis o impossível de propósito; no quanto cobrei
de mim o que jamais pude oferecer; me senti mal por não ser nenhum gênio da física ou da matemática,
culpando os meus dons humanóides por não serem sobrenaturais. Queria começar a faculdade aos 16,
me formar com 20, especialização na mão até os 23, casar aos 24, ter filhos aos 25, ser astronauta aos 26, ir à Lua aos 30. Agora, estou morrendo aos 40, com nada na mão por querer demais.

Eu fiz tudo isso, quase na mesma ordem e no mesmo tempo (curto) que designei a mim mesmo. Não me
sinto mais satisfeito do que os demais. Não me sinto mais afortunado, mais vivido, mais bem dotado.
Me sinto vazio, por ver tudo passar sem aproveitar. Tive tudo isso na vida mas não vivi nada. Abri mão
do protagonismo porque queria chegar "lá". Quando eu chegasse "lá", poderia ser um pai melhor, um
marido bom, um filho para se orgulhar, uma pessoa que fez tudo o que queria. Pena que decidi que a
minha vida só começaria quando terminasse.

Flutuo mais um pouco. Descubro que o "lá" nunca vai chegar. Porque estou morrendo e porque não sei
agradecer o que já tenho. Porque me falta tanto amor a mim mesmo que estipulo prazos e objetivos
impossíveis. Eu daria tudo para ter mais um pouco. Ter de verdade, na Terra. Voltar para casa e beijar
minha esposa, abraçar os meus filhos e me permitir ver o meu programa favorito. Rir sem medida, sair sem preocupação. Quantas rugas a menos eu teria se não tivesse tanta pressa? Das piores sensações de mim, a vencedora é aquela que me diz que tive tudo só para sentir que não tive nada. Eu tive uma vida completa, diferente do que imaginei, mas perfeita à sua forma, mesmo sendo tão fracionado, um pedaço de quem sou.

Meu pulmão arde pelo que julgo ser a última vez, e sei que é; flutuo mais, completando uma pequena
volta; sinto a minha vida tão cheia, mas tão vazia de mim, se perder no Espaço, assim como o meu corpo
está perdido. Respiro mais uma vez, triste e decidido à morrer. Finalmente chegarei "lá".

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