Mulherengo, pegador, conquistador e charmoso são adjetivos que eu nunca recebi. Na verdade eu achei que uma criatura como eu nem era capaz de sentir algo por alguém. Quando eu falo "criatura", por favor, não me desumanize, não quero sentir o prazer que isso possa gerar. Sou igual a você, porém mais feio. Sou igual a seu animal de estimação, porém mais burro.
Ensinaram-me o que seria um amor platônico quando eu ainda era muito pequeno, o tal do amor impossível e não correspondido. Esse é o único tipo de relação que me levaram a crer que eu teria em minha vida. Gostaria de ver a cara de todos ao ver minha foto com a Clara.
A primeira vez que a vi, estava indo para o trabalho. Ela estava conversando com um rapaz em um banco da praça próximo a minha casa, não consegui desgrudar os olhos dela nem por um segundo, mas eu tinha horário para chegar ao trabalho, então logo continuei meu caminho indo para a direção oposta. Eu não ando rápido, na verdade eu ando bem devagar mesmo. Eu realmente gosto de olhar para tudo e todos durante o caminho, eu gosto de brincar com as pessoas que passa por mim, finjo que não estou olhando para elas e de repente tento olhar diretamente para os olhos de quem caminha a meu encontro com o movimento mais rápido que sou capaz de fazer, mas só consigo encarar suas orelhas suja de cera. Eu sou igual a você, porém invisível.
Me arrumei todo para ir trabalhar, coloco minha melhor roupa, meu relógio mais brilhante e um pote de gel no cabelo mesmo com meus familiares falando que o gel piora a situação, mas como um bom discípulo de James Dean que sou, preciso colocar. Afinal esse ritual somente acontece uma vez no mês, então não é tão trabalhoso como pensa. Tenho que ir ao banco uma vez no mês, buscar o dinheiro que foi depositado na minha conta. O governo me paga um salário por mês para eu ir buscar ele. Sou igual a você, porém marcado como incapacitado.
No mês seguinte a cena se repetiu, vi a Clara acompanhada novamente, ela gosta de sorrir, conversa sorrindo com o rapaz. Sou igual a seu namorado, porém sem ter você. Mudei minha rota para chegar ao serviço, para ter ela por mais tempo no meu campo de visão. Aproveitando minha habilidade de não ser notado. Chego mais perto do casal para olhá-la melhor. Sou tão bom em me camuflar que eu posso entrar em uma loja pegar um produto e sair sem pagar, porque para onde eu olho somente vejo orelhas me encarando, só não sou bom em passar despercebido por crianças, não passa nada por elas, geralmente elas chega a chorar e tentar alertar seus pais sobre minha presença, mas os pais brigam com elas falando que é feio encarar as pessoas. Sou igual aquele menino que você via apanhando no colégio, porém sem ter ninguém batendo.
Ela deve ser imune a mim, porque no segundo que ela me viu a menos de dois metros dela, saltou do banco segurando a mão do namorado. Já olhando para frente forçando o namorado acompanhar seus passos, escuto um pedido de desculpa direcionado a mim. Essas foram suas primeiras palavras comigo, faltei serviço e voltei imediatamente para casa, com uma sensação diferente, com um aperto no estômago, uma felicidade jamais sentida por mim, subi na pilha de jornais que eu guardava e escrevi na parede da minha sala, junto com minhas outras anotações "Suas primeiras palavras 'Desculpe eu pensei que... '". Passei o resto do dia imaginando o que seria que ela tinha pensado. Sou igual a você, porém com 76 de QI.
Lá estavam eles no dia seguinte, entendi que ali devia ser um ponto de encontro deles. Dessa vez eu deveria me esforçar mais para não ser notado. No fim do dia já tinha descoberto onde ela morava, trabalhava e tinha boas notícias, ela não morava com o sangues-suga que vivia grudado em seus lábios. Já não bastava mais ficar olhando para ela daquela distância, sendo que já tinha sentido seu cheiro uma vez. Cheguei em casa e estava meus pais e meu irmão me esperando, eles disseram que o banco ligou e me entregou, falando que eu não tinha ido trabalhar em dois dias. Tentei explicar para eles que dessa vez o amor não era platônico, esse seria correspondido, ela já até havia falado comigo. Eles me explicaram a importância do trabalho na vida de uma pessoa e eu garanti que eu iria ao próximo dia e finalmente eles me deixaram em paz. Sou igual a você, porém com pessoas vigiando.
Já estava todo arrumado, mas não para o trabalho e sim para chegar mais perto da Clara. Eu não queria perder tempo passando longe dela, logo quando saí de casa e fui para a praça, dessa vez ela me viu chegando e ficou parada, perguntei seu nome e foi nesse momento que eu descobri que ela chamava Clara. Foi um momento mágico, eu estava corado de vergonha igual os apaixonados ficam nos filmes e ela estava muito constrangida e sem graça. Meu plano foi falho, vim com tanta vontade de saber seu nome que não planejei o que falar depois, bem que ela poderia ter me dado mais tempo para pensar e não tivesse apressado o passo. Eu achei que foi um bom começo de relacionamento, mas parece que ela nem o namorado gostaram muito de eu seguir eles o dia inteiro, em alguns momentos eu tentei chegar perto sem que ela me percebesse, mas meu andado não ajudou muito, até tentaram pegar um taxi e criar distancia de mim, mas eu já sabia onde ela trabalhava então meu coração logo acalmava com a ideia de vê-la novamente.
Quando eu cheguei em casa dessa vez não estava somente minha família e sim com policiais junto a eles, me explicaram que eu não posso assediar pessoas na rua. Foi um momento muito constrangedor porque eu não estava assediando ninguém e pelo fato de eu ter escutado meu irmão rindo quando os policiais falaram que não foi difícil me encontrar através das características que ela me descreveu. Eu pensei que ela tinha me visto através dessa figura que o policial tem em suas mãos. Meus pais disseram que eu iria ter que voltar a morar com eles, que assim que amanhecesse chegaria o caminhão de mudança e era para eu colaborar. Sou igual a você, porém incompreendido.
Só tenho mais a noite de hoje em liberdade, e resolvi aproveitá-la ao lado de quem eu amo. Então coloquei o meu melhor terno e fui a casa dela. Logo quando eu estava chegando a casa dela para me declarar com um discurso preparado dessa vez, eu a vi saindo vestida de abelha ao lado do seu namorado palhaço. Dei uma boa distância para eles, afinal eu não queria me declarar ao lado dele. Eles entraram em um prédio onde também estavam outras pessoas fantasiadas. Não tive problema em entrar de penetra, todos gostaram de mim de imediato alguns até elogiaram minha fantasia. Sou igual a você, porém em dia de Halloween.
Eu nunca tinha conversado com tantos desconhecidos na vida sem ser naquele dia, achei que estava no paraíso, todos olhavam diretamente para meus olhos, colocavam a mão no meu rosto e apertava minhas bochechas, igual eu sempre via minha mãe fazer com meus primos. Ali era o lugar perfeito para eu me declarar. Sou igual a você, porém com uma fantasia permanente.
O palhaço e a abelha estavam conversando sentado no parapeito da varanda, ela devia ser muito corajosa. Naquela festa eu conseguia me aproximar de qualquer um, e não foi diferente com ela, estava perto suficiente para sentir seu cheiro novamente e foi nesse momento que ela pediu para o palhaço buscar outro copo de cerveja. Repassei o discurso em minha cabeça e tomei coragem, aquele seria o momento que ficaríamos junto para sempre, nunca mais a soltaria. Sou igual a você, porém sem ninguém,
Pensei que seria um ato de coragem da minha parte se me juntasse a ela no parapeito da varanda, apoiei a mão no ombro dela para conseguir sentar ao seu lado. Naquela festa que todos estavam me aceitando, com ela não foi diferente. Senti meu corpo todo tremer quando ela apoiou sua mão sobre a minha como um gestão de familiaridade. Ainda sem olhar em minha direção, ela me perguntou se a fantasia de palhaço estava me incomodando. E então ela finalmente olhou para mim, diretamente para mim. Sou igual a você, porém não sou quem você quer que eu seja.
Agora sou eu que era um rapaz risonho.
Agora é ela que era a moça assustada.
Ela tentou se livrar do meu braço em seu ombro, e o reflexo fez o resto, o reflexo do susto fez ela dar um pequeno pulinho para frente junto a gritos de desespero, e o reflexo do meu rosto visto em seus olhos me fez enxergar a realidade. Eu jamais a soltaria, ainda dei conta de olhar diretamente nos seus olhos antes de segurar a sua mão durante a queda. Sou igual a você. porém realizado.
Eu acertei o chão do jardim em cheio, ela caiu sobre a grade que separa o jardim da calçada, mas a única parte do meu corpo que eu sentia era minha mão em volta da sua. Eu realmente queria ver a foto de nossos corpos junto no jornal do dia seguinte. Aposto que não dava para saber aonde eu começava e ela terminava. Minha última lembrança foi encarar seus olhos, mesmo que já estavam sem vida. Sou igual você.

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Igual a você
Short StorySeu sonho era ser igual a todo mundo, mas sua aparência nao deixava ele se misturar.