Conto dos mortos - Parte 2

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Meu companheiro de quarto voltou para seu refúgio. Estava calmo e com uma satisfação cínica em sua face esquálida e pálida. A nossa nova acompanhante o olhava fixamente, não dizia  uma palavra, mas pude perceber o rancor e ódio que armazenava em sua aura. Eu queria poder dizer palavras de conforto, ou qualquer coisa que pudesse deixá-la mais calma, mas não podia. O que iria dizer? Para perdoar seu cruel assassino e seguir em frente? Claro que não, eu não era a pessoa mais indicada para dizer dar tal conselho. Eu sabia do que ela precisava, a única coisa que deixaria sua alma em paz, e de certo modo a minha também. Não poderia permitir que um lugar onde passei momentos marcantes da minha existência virasse um antro de carnificina e maldade. Eu poderia fazer alguma coisa, e iria fazer.

- Qual era o seu nome?

- Lucy.

Deixarei claro aqui, o nome dela na realidade era outro, mas por questões éticas a chamarei de Lucy. Bom, para minha narrativa ficar mais fluida podemos dar um nome também ao nosso querido facínora,  o chamarei  de Martin.

- Lucy, o que você está sentindo nesse momento?

- Eu não sei, não sinto nada.

- Digo, o que você sente de verdade? Lá no fundo da sua alma.

- Sinto raiva…angústia…medo.

Isso era um mau sinal, eram os mesmos sentimentos que eu senti quando passei para meu estado de pós-vida. Obviamente os motivos que ainda me prendiam ao plano material. E iria acontecer a mesma coisa com aquela garota. Por um lado seria bom ter companhia, ter alguém para conversar. Mas era errado, eu tinha que ajudá-la a evoluir, e com isso quem sabe ajudar a mim mesmo.

- Tem um jeito, talvez, de ajudá-la a seguir em frente -  eu disse para ela.

- Tem mesmo? Como?

Percebi uma empolgação. Fiquei feliz. Ela realmente desejava seguir em frente, ao contrário de mim quando eu morri.

- Para que você possa encontrar a luz é necessário que você se sinta em paz, e para isso precisamos chegar à justiça.

Ela me olhava com atenção, estava mesmo decidida a fazer o que for preciso para atravessar o véu.

- Nós teremos que levar seu assassino à justiça.

- Matando ele? – apontou para Martin que estava deitado na cama, todo triunfante, dava até nojo de ver.

- Temo que sim.

- Mas vingança não é errado?

- Isso não é vingança, é justiça. Vamos evitar que ele mate outras jovens como você, e fazer com que você possa ficar em paz.

- Não sei se isso é certo.

- Me responda, se isso não é certo, por que continua aqui?

Ela não respondeu.

- Você se sente mal, se sente amargurada e injustiçada. Esse sentimento só vai embora depois que você finalmente ter sua justiça. É isso que acontece com os todos os espíritos.

Ainda percebi uma certa insegurança. Lucy não era uma pessoa vingativa e má, eu também não sou, mas às vezes precisamos fazer o que é certo. Matar Martin era o certo nesse momento.

- E como matá-lo? Não podemos nem tocar nele. Estamos mortos.

- Isso não quer dizer nada. Podemos agir do nosso modo. Mas para isso será necessário um sacrifício.

- Que tipo de sacrifício?

- Sacrificar nossas virtudes para um bem maior. O que iremos fazer será algo que nos marcará para sempre. Mas tudo é válido para alcançar os céus. Concorda?

- Acho que sim, não sei.

Lucy ainda estava meio confusa, meio abatida e duvidosa. Acho que ainda não confiava em mim. Achei um tanto ofensivo, aliás, eu era a única pessoa ali que estava disposta a ajudá-la, o mínimo que ela devia fazer é se entregar de cabeça à minha engenhosa ideia.

- Primeiro vamos precisar encontrar uma forma de atingi-lo fisicamente. Precisaremos de um intermediador.

- Não entendi.

Eu não queria falar as coisas diretamente ao ponto, poderia parecer um pouco agressivo, mas de qualquer maneira ela iria entender, então não pensei e falei.

- Precisamos de alguém para que possamos induzir a matar.

- Está falando de possessão? Você quer possuir uma pessoa e fazer ela matar para a gente?

Ela me pareceu mais calma do que o previsto.

- Eu não entendo muito de vida espiritual, mas sempre ouvi dizer que é errado, espíritos bons não entram em pessoas.

- Espíritos bons não ficam presos em um lugar. – Falei sarcasticamente. Depois senti uma pontada de arrependimento, acho que fui duro demais com a garota. – Desculpa, eu sei que não é fácil, mas as coisas não se resumem simplesmente ao bem e ao mal. Tudo é tão maior que isso.

- Está bem, eu aceito. Não quero passar aqui o resto da minha vida.

Ela fez uma cara cômica. Também aquela última frase era um tanto irônica, se fosse em um outro momento, talvez, daria incríveis gargalhadas. Mas resolvi apenas abaixar a cabeça.

- Como vamos fazer isso? Como vamos possuir alguém? – perguntou a garota. Vi determinação em seu olhar, pela primeira vez.

- É a primeira vez que ele matou uma pessoa. Ele sentiu o prazer de ter o sangue derramado em seus braços. Isso é como crack, depois da primeira vez, vicia. Se ele não matar novamente ele vai sofrer de abstinência. Em breve ele vai matar de novo, e é aí que agimos.

Não demorou muito, na noite seguinte Martin já se preparava para mais uma rodada de sexo e morte. Ele não imaginaria que seria a morte dele.

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⏰ Última atualização: Jul 04, 2014 ⏰

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