Camel

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Você tinha tudo para ser um escritor, tirando o fato de que não era. Eu não tinha nada para ser um escritor, tirando o fato de que eu era.

Você enchia aquele nosso apartamento ridiculamente pequeno de fedor de café às três da manhã, andava sempre com um cigarro barato atrás da orelha, sabia de cabeça todos os principais autores de cada escola literária — mas apenas porque sua mãe era professora. Mesmo assim você nunca soube nem ao menos metrificar um poema ou diferenciar naturalismo de realismo. Você odiava presença de pessoas, tirando a minha. As vezes você até mesmo odiava a minha presença. Você era a porra de um estereótipo de escritor, gritando do fundo da sua garganta. Eu juro que não sei como você nunca levantou a bunda do sofá, largou aquelas contas enormes e cansativas e inúteis contas de matemática e foi escrever um poema. Eu juro por Deus, tudo em você gritava alguma poesia estúpida do parnasianismo. Você era uma personificação daquela merda de vaso chinês.

Sim, porque você é difícil pra caralho de entender. Era. Merda. Passado.

Foco.

Ninguém lê aquela droga de poema sobre aquela merda daquele vaso chinês sem um dicionário do lado. Quem é que conhece todas aquelas palavras? E, porra, quem se importa com aquele poetinha das estrelas, ou com essa merda toda?

Você era assim: quem quisesse te ler, precisava de um dicionário antes. Trinta dicionários. Em trinta línguas diferentes. Hebraico, grego, qualquer língua indígena morta.

Eu nunca tive um dicionário. Eu sempre odiei parnasianismo. Me chame de pós modernista. Foda-se. Se não saí do fundo da sua garganta, se não é sincero a ponto de fazer a sua língua arder, não é poesia. Não me diga que sair gritando ó céus ó mares seguido de meia dúzia de mesóclise que ninguém vai entender é arte. Não me diga isso, porque não é.

Mas você, meu amor, você queria ser assim. Mas você se fantasiava de Os sapos. Você fingia que ria da tríade parnasianista comigo. Mas você era a tríade. Você era o próprio Bilac olhando para as estrelas e falando coisas complicadas pra deixar qualquer mocinha com as bochechas vermelhas. E o problema foi esse, provavelmente. Eu nunca fui tímido. Você nunca conseguiu deixar minhas bochechas vermelhas.

Como falei, eu nunca tive um dicionário. Eu nunca soube te ler.

Eu sempre odiei café. Bebidas quentes no geral. Meu poeta preferido é... Eu mesmo. Porque poesia é sinceridade. Eu sou sincero. Como eu vou saber que os outros são sinceros?

Você virava as noites fazendo aqueles exercícios da sua faculdade estúpida de qualquer coisa da computação. Eu sempre me lembrava de que te conheci daquela maneira, apenas com a diferença de que você tinha aquelas espinhas da adolescência, a faculdade ainda era uma dúvida e você tinha ejaculação precoce. Eu provavelmente não mudei muito também.

Eu estava na minha terceira faculdade. Primeiro ciências sociais, depois letras e enfim psicologia. Eu estava pensando em te falar que eu queria ir para história dessa vez, naquela noite em que você me deu a porra de um dicionário, finalmente.

Porque aquele nosso apartamento nunca foi o suficiente, não é? Não bastava me fazer ser um fumante passivo — e passivo em outras coisas também, algo que nunca fui com ninguém. Eu me arrependo tanto disso, meu Deus — você queria que eu me tornasse um fumante, então enfiou aquela merda daquele Camel na minha garganta. Toda vez que eu respiro eu sinto o cheiro do inferno agora. O seu cheiro.

Porque quando eu cheguei naquele nosso apartamento — lembra de como ela pequeno? A cozinha não era só a cozinha, mas também a sala e metade da lavanderia — eu te vi. De verdade.

Você era o próprio... Merda, eu não consigo nem pensar em alguma comparação.

Vendo você ali, eu entendi porquê Machado de Assis era romantista e virou realista apenas depois da morte da esposa.

Porque, sim, você morreu pra mim ali. Naquele instante, quando tratou o meu universo como merda e foi explorar o universo de outra pessoa, sabendo que eu estava todinho em suas mãos.

Mas eu era um saco de bosta.

Ao menos eu não era parnasiano — mas não adianta dizer isso, não é? Porque você não sabe o que significa. Porque você só se importa com aquele monte de número na sua calculadora.

Você me perguntou porquê é que eu cheguei tão cedo da faculdade. Só isso. Não passou pela sua cabeça em me falar não é isso que você está pensando? Ou qualquer merda clichê?

Aposto que não, porque você é a merda de uma mesóclise que todo mundo acha bonita, mas ninguém nunca aprendeu realmente.

Então, eu entendi.

Existem dois tipos de escritores: aqueles que não escrevem, mas sim são os próprios textos — esses são os ativos. Eles ditam o que vai acontecer. E tem aqueles que escrevem os textos. Esses são os passivos. Eles apenas sentem as coisas e, bem, escrevem.

Acho que não preciso te explicar mais, ou dizer qual de nós é qual.

Filho da puta.

CamelWhere stories live. Discover now