Capítulo 1

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Gritaria, loucura, multidão e muito rock’n roll. A música alcançava seus acordes mais potentes, as guitarras eram distorcidas ao máximo, e a bateria ditava o ritmo das canções. Era nada menos que o metal na plenitude de sua excelência. Cada expectador, embalado pelas drogas e música, curtia o momento a seu modo particular. E lá estava Friederic, como uma ave de rapina, a observar duas garotas que bebiam e riam como crianças que compartilhavam algum segredo. Uma delas pareceu retribuir seus olhares lascivos. Aproximou-se, Friederic quase gelou, tímido ao extremo, mas logo se esqueceu de tudo, quando a menina sem cerimônia puxou lhe e roubou um beijo. Antes que pudesse entender o que acontecia, a outra surgiu ao seu lado, agarrando-lhe pela cintura e o envolvendo num longo beijo de tirar o folego. Estou no paraíso, pensou o deslumbrado Friederic, que era disputado aos beijos por aquelas duas desconhecidas. Mas ele nem se importava com isso. Só queria saber de continuar revezando entre as duas bocas que lhe beijavam despudoradamente.
De repente as duas desapareceram, deixando-o procurando. Em sua direção vinha caminhando Luna, aquela por quem sempre fora apaixonado desde a infância. Ela aproximou-se a passos lentos, seus cabelos negros agitando-se como que soprados pelo vento da noite. Era como se o tempo parasse quando ela estava perto. A música cessou, as luzes diminuíram, ele aproximou-se e os lábios quase se tocavam. No momento mais esperado, ela apenas disse:
    — Filho, filho. Acorda, filho.
    Era apenas um sonho.
    Estava bom demais para ser verdade, lamentava-se ele.
Aquele era o primeiro sonho bom que Friederic tinha em várias semanas. Todas as noites eram apenas pesadelos. O mais frequente deles, era ser perseguido por um lobo negro, e quando a fera estava bem próxima, dava um golpe com suas garras e então ele acordava. Levantou a cabeça, limpou a baba do canto da boca, esfregou os olhos.
    — Filho, você dormiu a missa inteira. O padre ficou o tempo todo apontando para nós dois.
    — Desculpa, mãe. Tenho trabalhado demais.
    — Esqueça, Friederic. E cá entre nós, hoje a missa estava chata, mesmo. Você vai para casa comigo ou vai sair depois?
   — Vou encontrar a Luna e o Marius. Vamos comemorar.                                                                                                                            
   — Aniversário de quem?
   — A Luna ganhou uma bolsa de estudos. No início do ano viaja para a Inglaterra.
   — Então vá, meu filho. Divirta-se e dê os parabéns à menina por mim. E tome cuidado com aquele seu amigo, eu não gosto dele.
   — Ta bom, mãe.
  E lá se foi Friederic a passos largos, com toda pressa para sair, como era de costume todas as vezes que acompanhava a mãe. E não era para menos. Sempre era alvo de alguma piadinha por algum membro mais fanático. Ele se veste como um louco, comentava um. Ele ouve a música dos demônios, acusava outro. Ele bebe sangue e dorme em cemitérios. Eu já vi um grupo de pessoas iguais a ele, alfinetava outro. Certa vez foi acusado de integrar um grupo de satanistas que haviam queimado uma igreja próxima. Chegou a ser apontado na rua, mas os verdadeiros criminosos foram presos e logo tudo foi esquecido. Desde sempre tivera predileção pelo estilo mais sombrio. Desde as roupas negras, até suas companhias.
   Era bastante incomodo, mas Friederic fazia questão de acompanhar sua mãe. Mais por uma questão de respeito à família que o acolheu. Friederic fora adotado ainda bebê pelo casal Francois e Genieve Pontmercy. O casal não podia ter filhos. Um dia Genieve atendeu no hospital onde trabalhava, uma mulher em trabalho de parto. Devido a uma infecção, a mulher morreu, mas a criança sobreviveu. Dias depois o recém-nascido foi mandado ao orfanato, mas Genieve se descobriu enamorada pela criança. Francois usou sua influência como promotor público, então eles adotaram legalmente o garoto, que passou a chamar-se Friederic. Três anos depois, Francois morreu de infarto.
   Bem longe da igreja, Friederic perambulava pelas ruas de Paris. Seu destino era o Pig Head, uma casa de shows onde eram realizados eventos, e aquela noite seria a Noite do Metal, onde várias bandas conhecidas realizariam suas apresentações.
   Enquanto planejava a noite, teve a nítida sensação de estar sendo seguido. Conhecia bem os caminhos e sabia onde estava, então decidiu apressar-se. O lugar não era muito seguro, com todos os ladrões e vagabundos que ali viviam. Algo parecido com passos foi captado por seus ouvidos, logo eram vozes. Poderiam ser apenas algumas pessoas indo para o mesmo lugar que ele. Decidiu tomar um atalho, adiantando mais o passo. Confirmou que estava sendo seguido, o suspense tornando-se inconveniente e insuportável. Emendou na corrida, já em disparada. Encontrou-se apostando corrida com alguém que não conseguira identificar quem era, mas que parecia ser um homem pela silhueta. Correu tanto que parecia que cuspiria o coração a qualquer momento, até que entrou em uma rua mais escura, ofegante. Acho que despistei o desgraçado, vangloriou-se, ainda tentando recuperar o fôlego. Ele escondeu-se atrás de uma carcaça de um carro depenado, quando sentiu uma mão sob seu ombro. O coração gelou, as pernas tremeram, então virou-se, pronto para atacar ou defender-se. Ou correr.
  — Porra, Luna. Você quase me mata de susto — esbravejou Friederic, que por pouco não sujou as calças. — O que você está fazendo aqui?
  — Devia ver sua cara, Fred. Quem pensou que fosse?
  A menina quase não se continha. Tentava não rir, mas era inevitável. Friederic sabia que ela gostava de assustar as pessoas, mas não resistia àquele rostinho lindo que ela tinha. O sorriso que sempre conseguia acalmá-lo, por isso ela sempre abusava e aprontava com ele.
  — Isso mais parece ideia do Marius. E por falar nisso, onde está aquele filho da p…
  — FREEEEEEEEED.
  Um grito ao lado de seu ouvido fez suas ideias embaralharem a ponto de derrubá-lo. Mesmo quase surdo e com o coração batendo rápido pelo susto, sabia a dupla de amigos que tinha. Marius e Luna caiam na gargalhada, e mesmo ainda furioso, sabia que nada mudaria. Observava Luna mais uma vez. Aquele belo rosto, de uma beleza peculiar. Os olhos negros como a noite que convida ao pecado; os lábios carnudos que deviam ter o gosto da perdição. Ela tinha o dom de acalmar as feras, e parecia saber disso.
  — Marius! Babaca como sempre.
  — Relaxa, Fred. Você anda muito estressado — brincava Marius. — Você parecia uma galinha fugindo de um cachorro.
  — Até você, Luna? — censurava Friederic.
  — Não olhe para mim. A ideia foi dele — defendeu-se ela.
  — Ah, deixa para lá. Trouxeram meus acessórios?
  Marius abriu a mochila que trazia consigo e tirou um sobretudo de cor preta e um par de coturnos. Friederic retirou o blusão branco que vestia para acompanhar sua mãe nas missas. A peça servia apenas para ocultar a camisa preta que vestia sobre a pele. A estampa mostrava a figura mais tradicional e conhecida da morte, com sua foice em punho. A figura nefasta encontrava-se sentada num trono feito de ossos e crânios, onde sua atenção era disputada por um anjo e um demônio. Ele guardou com cuidado seu blusão branco e seus sapatos engraxados, calçou os coturnos e vestiu o sobretudo. Luna lhe trouxe um par de pulseiras cravadas de pregos e um cordão com pingente de pentagrama.
   Antes de chegarem ao Pig Head, já podiam ouvir de longe os acordes convidativos das músicas em execução do Black Santuary, uma banda do gênero black metal que tornava-se popular pelo estilo de apresentação dos músicos, abusando do estilo gótico, mesmo fazendo um som pesado. Friederic acompanhava a trajetória da banda desde o início, mas aquela noite eles estavam diferentes. Um visual cadavérico que por um instante fez Friederic jurar ter visto o vocalista com dentes pontiagudos, além de ostentarem uma aparência mais sombria. Excêntricos satanistas de fim de semana, pensou ele.
   Luna começara a bebedeira com algumas amigas. Umas eram só elogios para Marius, o galã mais cobiçado. Com cabelos negros na altura dos ombros, porte de atleta e os olhos verdes ( lentes, na verdade seus olhos eram castanhos). Ele não tinha problemas em conquistar quem lhe interessasse. Extrovertido e eloquente, mas o que usava como arma de sedução era o fato de encarnar o perfeito cavalheiro, gentil atencioso e muito bem educado. Fazia qualquer garota sentir se única e especial, mas como nada e perfeito, quando bebia demais tornava se o mais xucro e arredio dos animais, uma espécie de adaptação grotesca de um D. Juan às avessas.
   Friederic já era mais simples. Com seus cabelos encaracolados, olhos negros e altura mediana, não fazia muito sucesso entre as mulheres. Ostentador de um corpo delgado e sem músculos, possuía um senso de humor ácido e um sarcasmo venenoso. Não era muito apreciado pela maioria. Sabia disso, e com o tempo parou de se importar. Marius queria ser aceito e adorado por todos, Friederic queria que todos fossem para o inferno.
   Luna observava os dois amigos com o olhar crítico de quem faz uma difícil escolha. Desde sempre nutria uma paixão secreta por Friederic, embora nunca houvesse revelado a ninguém. Ele também caía de amores por ela, mas aparentemente ambos estavam fadados a amar sozinhos se dependesse de Marius, que arrastava suas asas para Luna sempre que possível, mesmo sendo negado todas às vezes.
   A noite ía avançando e os ânimos ficando mais exaltados. Uma confusão começou e logo tornou-se uma briga generalizada. Friederic e Luna saíram de cena para não apanhar, Marius encontrava-se no meio da confusão, Luna desapareceu, enquanto Friederic, pegava uma cerveja. Mais uma noite como as outras. O Pig Head, ou como alguns chamavam, Flagelo da Sociedade, pelo fato de ser um espaço frequentado por viciados, bêbados, traficantes e muitos daqueles tipos renegados da sociedade. Enquanto Friederic caminhava despretensiosamente pelos recantos do lugar, passou por um grupo de pessoas que se drogavam indiscriminadamente, reconhecendo Serafine, alguém que há muito tempo não tinha notícia.
  — Serafine, Serafine — gritou ele.
  — Friederic, quanto tempo não o vejo. Sabia que encontraria você aqui.
  — Pensei que você tivesse parado com isso. — Referia-se a um baseado que ela trazia consigo — Será que você não aprendeu a lição desde a última vez?
  — Friederic, que fofo. Sempre preocupado comigo. Mesmo depois de tantas coisas que eu disse, que eu fiz, você ainda tenta me…
  Nem bem conseguiu tecer mais uma palavra e vomitou como se estivesse em um filme barato de exorcismo. Não conseguindo mais manter-se de pé, agachou e a cena ficou ainda mais deprimente. Enquanto segurava sua cabeça e limpava sua boca, Friederic percebia com grande pesar, que aquela que ali estava, nem de longe lembrava a Serafine que ele conhecia. Em seus tempos áureos, a menina era dona de uma beleza quase divina. Uma pele clara como um dia de verão, cabelos compridos e loiros, um par de olhos verdes que combinado a um sorriso largo com uma boca carnuda, a faziam povoar os sonhos eróticos de todos a sua volta. Sempre a mais bela de todas nos tempos de colégio. Disputada por todos os homens e mulheres, sabia aproveitar todas as formas de prazer que lhe fossem atraentes, pois sempre fora livre de preconceitos.
   Na adolescência provou maconha pela primeira vez em uma festa e dali em diante declinou. Sempre teve uma predileção pelos tipos marginais para relacionamentos. Isso explica o fato de ter se envolvido com Marius.
  — Acho que já estou melhor, Fred.
  — Nada disso. Eu vou te levar pra casa e nada de fugir como fez da última vez.
  — Agora não. Tenho que encontrar alguém.
  — Quem é o delinquente?
  — Ah, que bonitinho. Sempre tentando me proteger. Vim encontrar meu namorado.
  — Você vem comigo. Quem é ele? Eu digo que você foi para casa.
  — É um dos caras do Black Santuary. Vou terminar com ele hoje.
  — Deixe-o para lá e me deixe cuidar de você, vai. — Tentou recorrer ao apelo sentimental, mas a menina estava irredutível.
  — Pare, Fred. Não faz assim. Eu não mereço esse carinho todo que você tem por mim. Eu tenho pouco tempo, não sei se vou sobreviver essa noite, mas antes de ir, quero dizer que desejo toda a felicidade do mundo pra você.
  — Para de putaria, Serafine. Vem logo.
  — Não dá mais tempo. Preciso ir agora. — Aproximou os lábios dos dele, e deu-lhe um beijo de tirar o fôlego. — Não diga nada, Friederic. Apenas saiba que você é muito especial para mim, e não deixe que digam o contrário.
  — Fica comigo, Serafine.
  — É uma pena não termos dado certo, mas nossos caminhos são diferentes. Seu futuro pode trazer muita dor e sofrimento, mas se sobreviver, será muito poderoso. Na hora certa você vai saber. — Deu-lhe mais um beijo. Um pouco mais rápido que o primeiro, mas com a mesma intensidade. — Não sofra muito por mim, apenas queria ver você pela última vez.
  Afastou-se e rapidamente sumiu na multidão. Não era a primeira vez que Serafine o beijava. Ela gostava de provar todas as bocas que podia. Nem Luna, em outro momento, escapara de sua volúpia incontrolável. Mas dessa vez aquele beijo tinha um gosto diferente, e nem era por causa do vômito ou do excesso de bebida, mas algo como desespero, despedida. Mas o que ela queria dizer com futuro de dor e sofrimento? Serafine sempre fora cheia dos enigmas. Desde nova tinha lá seus momentos mediúnicos.
   Friederic pegou mais uma cerveja e juntou-se a Luna e Marius. Embora percebesse o amigo distante e pensativo, Luna tentou descobrir alguma coisa, mas não entendia porque partilhava por algum motivo aquela angústia que devorava Friederic por dentro. A noite avançava e a madrugada aos poucos ia drenando o ânimo dos frequentadores do infecto chiqueiro conhecido como Pig Head. Marius somava os resultados da noite: oito garotas, um olho roxo e muita bebida. Luna ainda tentava, a todo custo, conseguir arrancar a verdade de Friederic. O lugar aos poucos foi ficando vazio e lá se foi mais uma noite.
   No dia seguinte, Friederic cumpria sua rotina de trabalho na cafeteria e confeitaria La Verrie. Como balconista, ele ouvia a maioria das histórias que as pessoas contavam, ainda mais numa manhã pós-balada. Ao contrário da maioria, ele gostava da segunda-feira, pois ouvia as maiores asneiras dos bêbados de fim de madrugada. Certa vez uma garota dizia a outra que foi seduzida por um belo vampiro de olhos vermelhos. Um sujeito ainda embriagado jurava ter sido perseguido por um cão enorme de olhos amarelos. Tantas loucuras tornavam seu trabalho mais divertido. Enquanto atendia aos famintos das primeiras horas da manhã, o balconista das orelhas-afiadas ouvia duas garotas narrando aventuras com outras garotas.
   Sua atenção é desviada abruptamente quando adentra pela cafeteria, Marius, acompanhado de um sujeito carrancudo e mal-encarado, com cara de torturador nazista. Vestia-se socialmente, aparentando estar tenso e mal-humorado. Puta que pariu, Marius! Que merda você fez dessa vez? Imaginava ele.
   — Friederic Pontmercy? — o sujeito inquiriu.
   — Sim — respondeu desconfiado. — Em que posso ajudar?
   — Detetive Samael Baptiste. Homicídios. Você tem um minuto?
   Friederic aproximou-se, sentou em uma mesa onde Marius estava e o detetive começou:
   — Você conhece Serafine Deverreaux?
   — Sim. É minha amiga.
   — Serafine Deverreaux foi encontrada morta essa manhã, nos fundos da casa de shows conhecida como Pig Head. Seu amigo disse que vocês são frequentadores do lugar e eram os amigos mais próximos da vítima.
   Friederic começou a desesperar-se, a ponto de precisar ser controlado por Marius. Ele ficava repetindo que não acreditava no que ouvia, balbuciando feito um louco o nome da falecida. O detetive conversou mais uma vez com Marius e decidiu interrogar Friederic no fim do dia, na delegacia. Entregou-lhe um cartão com seu número de telefone e saiu. Marius tentava disfarçar, mas também sofria. Ele vira quando retiraram o corpo de Serafine da lixeira dos fundos do Pig Head. Estava indo tomar café no La Verrie, quando viu uma movimentação próxima. Foi quando chegou mais perto.
  — Como foi isso, cara? – indagou Friederic, tentando esconder as lágrimas.
  — Parece que bateram muito nela. Quebraram o pescoço. Algo do tipo.
  — A mãe dela já sabe?
  — Acho que não.
  — E a Luna?
  — Já deve estar sabendo. Foi mal ter trazido o tira aqui, cara. Ele me viu perto do corpo e ficou me fazendo um monte de perguntas.
  — Deixa para lá.
  — A Serafine disse se estava encrencada?
  — Nada demais. Só trocamos algumas palavras.
  — Se cuida, cara.
  Ao fim do dia Friederic foi procurar o detetive Samael Baptiste em sua sala. Começou fazendo perguntas de praxe, do tipo: onde morava, com quem, onde trabalhava.
  — Soube que você mantinha um relacionamento muito próximo com a vítima. Desde quando a conhecia? — O detetive começou a ser mais objetivo.
  — Já faz muitos anos. Fomos criados juntos. Éramos muitos próximos.
  — Já chegaram a ter algum relacionamento mais íntimo?
  — Ela namorou meu amigo há pouco tempo, mas nosso relacionamento era só de amizade.
  — Você sabe dizer se a vítima estava drogada ou embriagada na noite de sua morte?
  — Ela estava bêbada. Vomitou em mim, eu a socorri. Apenas trocamos algumas palavras e ela se foi.
  — Você costuma usar drogas, Friederic Pontmercy?
  — Onde quer chegar, detetive?
  — Eu faço as perguntas aqui, garoto. Serafine Deverreaux foi presa duas vezes por vandalismo e posse de drogas. E você foi o último a vê-la com vida.
  O detetive pressionava o quanto podia, fazendo jogos psicológicos com Friederic. Tentava fazê-lo vacilar nas palavras, até que descobriu a informação que finalmente começaria a dar um rumo às investigações: o envolvimento da vítima com o músico da banda. Agora restaria saber quem ela encontraria aquela noite.
  A porta abriu-se e um policial o chamou. Momentos depois ele voltou e cordialmente dispensou Friederic, entregando-lhe mais um cartão com seu número pessoal e pedindo que o procurasse, caso lembrasse mais alguma coisa.
  No necrotério ali próximo, o detetive adentrou às salas, acompanhado do legista. O médico estava tenso e falante enquanto entravam em uma das salas.
  — Muito bem, Jonas, eu estava no meio de um interrogatório. O que é tão importante?
  — Você precisa ver isso, detetive.
  O médico descobriu o cadáver sob a mesa. Era o de Serafine, com todos os hematomas, pescoço quebrado, e algo característico que chamou a atenção do detetive.
   — Mordida de vampiro. Quem mais sabe disso, Jonas?
   — Eu, você e o perito Valjean. Mas não se preocupe. Ele sabe com o tipo de coisa que lidamos. Oficialmente ela foi morta por algum fanático religioso.
   — Eles já não atacavam há muito tempo.
   — Pois é, detetive. Mas o mais impressionante é isto aqui. — Jogou sobre o cadáver da bela Serafine um líquido negro e em instantes começou a subir das feridas da vítima uma espécie de fumaça. — O que acha disso?
   — Então ela estava…
   — Se transformando quando a mataram. Seja lá quem a mordeu, esperou o processo começar para começar a matá-la. Foi torturada até a morte. Só não posso precisar se o mesmo que a mordeu foi o mesmo que fez isso.
   — Algum caçador mercenário?
   — Acho pouco provável. Um novato, talvez. Mas seja lá quem for, a única coisa que sei, Samael, é que se os Filhos de Belial voltarem a caçar por aí, vai acontecer outra guerra de sangue.
   — Lá vem você de novo, Jonas. Não vamos ter outra guerra de sangue, pode ficar tranquilo. Eu vou encontrar o responsável por isso. Esse é o meu trabalho. Por enquanto vamos manter isso em segredo. Ao que me diz respeito, ela foi mais uma infeliz, vítima da histeria religiosa. Ela mexia com bruxaria, Jonas. Natural que algum fanático religioso tentasse livrá-la do demônio.
   — Sabemos que não foi assim. Já é o terceiro caso só esse mês. Eles estão voltando a caçar inocentes de novo, Samael. Desculpe se estou sendo inconveniente. Eu sei que você escolheu uma vida nova, longe de tudo, mas você não pode negar sua natureza. Antes eram os lobos, agora são os vampiros que estão fora de controle.
   — Você tem razão, Jonas.
   — Eu sei que…
   — Está sendo inconveniente.
   Deu de calcanhares, bateu a porta e deixou o médico falando sozinho. Há muito tempo Jonas era apenas o jovem médico que assumira o posto de legista. Certa noite foi levado a sua mesa um jovem para ser dissecado. Tal foi sua surpresa quando o jovem levantou da mesa e começou a persegui-lo. Conseguiu alcançá-lo e tentou cravar as presas em seu pescoço. Ele anda conseguiu desvencilhar-se, logo em seguida um cão de tamanho descomunal, com olhos amarelos como a lua invadiu o hospital, e fez o jovem em pedaços. Com a mesma rapidez que surgiu, a fera desapareceu. Um homem chegou instantes depois e explicou ao médico que tremia feito vara-verde, tudo o que acontecera. Era Samael Baptiste, que recrutou o médico para ser um dos muitos agentes que trabalham para os lobisomens.
    No dia seguinte, aconteceu o enterro da bela Serafine, que fora marcado para às quatorze horas. Luna chorava como uma criança diante do caixão da amiga. Marius a todo custo teimava em segurar uma lágrima que tentava escorrer rosto abaixo, mas seu sofrimento era visível. Genieve e Friederic tentavam consolar Elisa Deverreaux, mãe de Serafine. A mulher estava transtornada, dizendo querer descer ao túmulo junto com sua única filha. Ora chorava, ora contemplava o cadáver da menina. Um sofrimento indescritível devorava sua alma por dentro. Alguns amigos e vizinhos vieram prestar as últimas homenagens fúnebres. Por um segundo Friederic partilhou do mesmo sentimento de Elisa: descer ao túmulo junto com Serafine. Mas agora era tarde demais. Pelo menos conseguira dar um último adeus, embora ainda não se conformasse. Sua morte violenta e sem explicação começava a aguçar seus instintos. Mesmo assim, agora era tarde demais. A mais bela de todas, amor da vida de todos e que dizia que todos eram dela, mas ela não era de ninguém, fora reduzida a um cadáver vazio, sem alma ou sentimentos. Friederic agora começaria a aprender na prática que a morte e o fim são inevitáveis quando o ser humano descobre-se vivo.

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