O DIA SEGUINTE
"Para aqueles que têm esperança o dia seguinte sempre será sinônimo de redenção"
Existem pessoas que alegam ver o futuro e eu sinceramente acredito nelas, confesso até ter inveja de saber o que ainda vai acontecer. Não fui agraciado com esse dom. Meu dom é menor. Sou bom apenas com o passado. Tenho a capacidade de lembrar cada fato, cada data, cada alegria ou dor vivida por mim e as pessoas próximas; meus amores, meus inimigos. E não importa o que aconteça não consigo me desfazer deste arquivo canalha que é minha memória. Peço inclusive que se alguém souber uma formula para o esquecimento, por favor, me avise. Chegar aos setenta e cinco anos com tanta informação revirando na minha cabeça é uma desgraça! Rezem para não ter esse karma, prefiram sempre que possível apagar de suas mentes tudo aquilo que viveram ainda que sejam boas lembranças. Vocês podem estranhar porque alguém quer esquecer as coisas boas que viveu,mas é que quando se chega ao ponto que estou até as recordações mais positivas se tornam um pesadelo simplesmente porque deixa claro que aquele tempo bom não vai retornar!. Tenho consciência que só a morte me libertará dessa condenação que é memorizar as coisas. Enquanto não chega esse dia às malditas lembranças me trouxeram mais uma vez aqui... A essa casa da qual fugi há tanto tempo por não suportar a verdade... Aqueles olhos brilhantes parecem me olhar como se tudo não tivesse acabado. Isso era o que mais gostaria de esquecer!
Capitulo 1
OS PRIMEIROS PASSOS PARA O ABISMO
O lugar onde vivíamos não era o paraíso na terra, mas nos oferecia certa paz. Tinha trabalho, e um progresso lento e contraditório, mas ainda sim um progresso. Coisas erradas aconteciam,mas como eu disse estava longe de ser um paraíso. Natural, vindo de uma sociedade que buscava se entender. O único problema era quando insistíamos em ferrar com a nossa vida e a vida dos outros por pura imbecilidade. Aliás, acho que o mal do século é a ignorância. Pra mim isso ia se confirmando a cada dia com tantas atrocidades que eu infelizmente testemunhei. Se no principio o caos ainda podia ser controlado com o passar dos anos a ignorância foi desenhando a face mais obscura daquele período. E entendam a expressão 'face obscura' no pior, do pior dos sentidos. Posso dizer com toda certeza que observei o inferno de perto e até vivi nele por um certo tempo.,mas desde já aviso que não foi uma escolha minha e sim de uma maioria idiota e incapaz! Estou tirando meu corpo fora com essa afirmação? Fugindo da responsabilidade? Absolutamente. Só estou informando que não dava pra fazer muita coisa contra, pelo menos naquele momento.
As leis existiam, eram até numerosas. Parecia ter uma lei para cada ato cometido, mas isso não era um problema. A questão era que nunca funcionavam como deveriam porque não havia interesse do Poder. Esse descaso foi provocando uma reação em cadeia na qual todo mundo era senhor de suas próprias regras, não havia uma regulação da sociedade então cada um agia de acordo com seus desejos. E foi nessa de 'faço minhas leis' que a gente se fodeu de vez!
Falando assim não dá pra ter uma dimensão exata da situação então vou narrar uma das merdas que aconteceram naquela época. Isso talvez tenha sido uma das cenas mais lamentáveis que tive o desprazer de ver na minha vida. Marquei essa data não só pela gravidade dos fatos, mas também porque era dia de prova na faculdade. Lembro de ter acordado tarde naquele dia, estava atrasado. Com o tempo apertado tinha que decidir entre o café ou o banho, claro, optei pelo café. Catei a mochila e partir rumo ao ponto de ônibus, minhas pernas estavam sem controle tamanho a pressa. Ainda assim não adiantou muito o ônibus que passava perto da universidade chegou tarde e para piorar o dia um congestionamento cruzava meu caminho na altura da Avenida Odama. Pressa, transito, impaciência... Claro que nada disso é muito significativo principalmente para quem vive em metrópoles. Então eu relaxei no banco do ônibus e aguardei porque aquele seria só mais um dos problemas que iria enfrentar. Enquanto observava a paisagem caótica. Um motorista de fusca buzinava impacientemente mesmo sabendo que não adiantava. O motorista da frente colocou a cabeça para fora e mandou que o babaca parasse de buzinar. Não adiantou, o barulho irritante da buzina persistia. O motorista da frente avisou que estava assustando seu filho e que iria descer do carro se ele não parasse. Como não surtiu efeito, ele desceu do carro e foi tirar satisfações. O idiota do fusca desceu também. Seguiu-se uma chuva de xingamentos e empurrões. Tinham entre 45 a 60 anos, tipo homens comuns como seu pai,seu tio e estavam ali se agredindo. Quando o mais velho caiu no chão o pai do menino voltou ao carro, mas o velho levantou-se e pegou uma barra de ferro no porta malas arremessando com força várias vezes contra cabeça do outro. Meus amigos! Não sei e nem quero descrever o estado que ficou a cabeça do homem, sei que a rua tingiu-se de sangue. Eu, os outros passageiros estávamos atônitos nas janelas dos ônibus ,dos outros veículos e na rua as pessoas fizeram um silencio perturbador. Todos olhavam aquela cena de barbárie e esperando qual seria o próximo passo do agressor. Ele ficou parado por alguns segundos com a barra de ferro nas mãos ainda parecendo estar possuído por sua fúria que só sessou quando viu o garoto, filho da vitima, apavorado no banco de trás do carro. Enquanto o olhar do menino cruzava o olhar do assassino ele se assustava ainda mais e parecia se dar conta do que tinha feito. Voltou para o carro de cabeça baixa e pálido. Algumas pessoas se aproximavam do carro para acudir a criança. Quando a policia chegou meu ônibus já estavam saindo da região, o congestionamento melhorava. Na faculdade contei com a compreensão do professor para fazer a prova faltando meia hora para terminar o tempo da aula.Não consegui responder uma misera questão porque o sangue daquele homem parecia tingir a prova. A caneta tremeu em minhas mãos permitindo que eu escrevesse somente meu nome. Entreguei em branco mesmo e sai da sala.
Esse crime se transformou numa obsessão, passei a acompanhar todas as noticias relacionadas a ele até a decisão final da justiça, cogitei até pular pra Direito nessa época. Assiti uma das audiências criei uma admiração pelo promotor que cuidou do caso e de como ele falava bem. Mas todo o trabalho dele na acusação e a minha ansiedade foram em vão. O assassino foi inocentado deixando o tribunal quase como vitima das circunstâncias. Mas do que inocentado o cara foi 'premiado' por ter cometido um crime. Esse foi o primeiro passo para o abismo, diria eu. Primeiro de muitos outros tão grotescos quanto. Na sentença deste assassino estava a crônica de uma civilização que se perdia no medo e na impunidade.
No entanto não estávamos tão abandonados como eu pensava. Havia muita gente interessada no caso, Gente que tinha interesse no caos, na bagunça! Gente que clamava pela inocência do babaca do fusca por razões que só saberíamos alguns anos depois.