Capítulo 2 - Parte Um

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"Deixe-a! Uma defeituosa não fará falta. Deixe que se enfie no primeiro buraco que encontrar".

Coloco as mãos sobre os ouvidos, tentando calar as vozes do passado que me assombram em pesadelos cruéis, plantados em memórias que não deveriam existir.

Estou confusa, perplexa. Quero sentir raiva, gritar, esbravejar que raios eles estão fazendo, o que estão pensando para me deixarem. Porém, o único que sinto é o vazio que me atormenta há tanto, novamente a sensação que luto para manter afastada, abafada sob uma superfície de gelo frágil demais.

Curtas lufadas de ar pelo ar subitamente gelado são tudo o que minha boca solta a cada ofego.

Não consigo sentir as pontas de meus dedos, não sei se estou respirando direito, não sei se o sangue que se empossa abaixo de mim é meu.

Havia me ferido sem notar?

— Levante daí, sua louca! — A voz é baixa, mas a bofetada em minha face é eficaz. — Levante-se, ou vai morrer.

A mulher que me salvou de ser baleada não fugiu correndo após a explosão, minha mente consegue assimilar, quando sou puxada como uma boneca de pano para o beco sem saída sujo mais próximo, entre a padaria e um prédio medíocre caindo aos pedaços.

— O quê? — pergunto, como uma tola.

— Precisamos sair das ruas. Você conhece essa área melhor do que eu.

Ela se interrompe ao perceber minha expressão de choque, meus olhos mirando atrás de si.

O que já foi o rústico e charmoso Centro de Mônaco é agora como as ruínas de um cemitério. Pilhas de concreto, lama, terra pontuam cada canto, corpos se amontoam aqui e ali. Estamos pouco afastadas do Centro, em uma das ruas laterais, mas próximas o suficiente para notar as caretas de terror e os gritos mudos, marcados eternamente nos rostos sem vida.

Quase todo o lugar onde estamos está vazio. O silêncio é quebrado por ruídos ocasionais e sons mais distantes de luta nas outras ruas, quase inaudíveis, uma sequência de dolorosos baques surdos e agudas súplicas que vêm em berros.

A batalha se afastou e foi estendida pelas demais ruas da segunda cidade-provincial mais importante da Sétima Cidade.

Meu coração erra uma batida quando noto que estive fora do ar mais tempo do que pensei. Por descuido, poderia ter morrido.

— Tem... — Engulo em seco, soltando uma tosse rouca em seguida. — Tem uma passagem perto do muro norte, na estrada para a próxima cidade. O porto da Divisa pode estar vazio por esta hora também, mas...

Nego com a cabeça.

— De uma forma ou de outra, precisaríamos de um destino. E não há um. Seria muito arriscado entrar no Triângulo, assim como sair de Aliança agora.

— Eu tenho um... Um destino — diz Dakota, hesitante. — Sei que não tem motivos pra confiar em mim, mas realmente quero sair daqui. Se me ajudar, posso te ajudar também. Conheço um lugar na divisa com a Sexta Cidade, cerca de um dia de viagem a cavalo pela estrada principal, perto da fronteira do Triângulo. O porto de Le Memorie. Nós podemos ir pra lá e... Não sei se conseguiremos, não é o destino perfeito, mas é a melhor opção para termos uma chance, mesmo que pequena, de permanecermos vivas.

Assinto, sem pedir mais detalhes. Ela parece aliviada por isso.

De uma forma ou de outra, continuaríamos servindo os porcos da Elite.

De uma forma ou de outra, eu seguiria presa.

No fundo, sei que minha história em Aliança está longe de acabar.

Artefatos de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora