Voltei para casa segurando o papel, amassando-o e relendo. O que tia Luíza pensaria de reuniões de apoio? Temos uma relação ótima, ela me acolheu desde que perdi minha mãe e não quis ir morar com meu pai e sua nova família. Provavelmente ela vai me apoiar, como sempre, mas talvez nem eu goste de lá, e acabe desapontando ela e todos à minha volta, que não vêem a hora de uma melhora considerável.
Antes mesmo de adentrar no condomínio, guardei o papel, por precaução. Acenei para Dona Yolanda, uma senhora que sempre estava em sua varanda observando o pouco movimento. Ela sorriu, o batom vermelho em contraste com a pele extremamente branca, e o cabelo de um preto azulado. Uma espécie de Branca de Neve mais vivida e alguns quilos à mais.
Entrei em casa, e lá estava Igor, jogado em um dos sofás, celular na mão e camisa no chão.
— E aí, Lena, a Ju tá na cozinha — ele sequer deixou de olhar para a tela, e disse tudo como se fosse o dono da casa, e eu, a visita.
Antes que eu fosse em direção à cozinha, Julia correu pelo corredor e me puxou escada acima. Seu cabelo loiro balançava e ela estava com um cheiro doce e suave, como de costume. Todos sempre disseram que ela não necessita de perfume, mas mesmo assim seu quarto têm no mínimo, quatro frascos vazios.
Tirei o teste do bolso e ela o puxou rapidamente, correndo para o banheiro no fim do corredor. Esperei ela na porta, em silêncio, preparada para dar meu melhor abraço de quem está com a vida toda bagunçada, mas tem tempo para ajudar o próximo - atitude herdada da minha mãe.
O tempo pareceu não passar, mas quando Julia saiu do banheiro com o rosto inchado e vermelho, já me imaginei segurando um bebê lindo no colo e preparando uma festa enorme de um ano. Um segundo depois, ela estava agarrada em meu pescoço, pulando e rindo sem parar.
— Eu sabia que só estava atrasada, eu sabia! — ela finalmente me soltou, e no mesmo momento, a puxei e nos abraçamos novamente, sem pulos.
— E eu sabia que você estava estranha demais essa semana. — Tia Luíza estava terminando de subir as escadas, os braços cruzados e seu pior olhar estampado no rosto.
Na hora seguinte, me sentei com Alice e vi fotos de seus amigos de classe, enquanto ela comia um brigadeiro caseiro que havia queimado e dava risada de áudios de suas amigas.
Fiquei com ela no sofá, olhando pela janela a chuva que caía, lembrando de quando Pedro fazia o maior esforço para chegar da faculdade e ir me ver. Fazíamos nossos trabalhos juntos, depois assistíamos à qualquer programa enquanto a chuva derrubava o mundo. Então, era minha vez de ir para a faculdade, onde eu sempre me atrasava quando ele me levava, porque os beijos eram demorados e os abraços quentes e aconchegantes demais para serem interrompidos.
Daqui algumas semanas, o acidente irá fazer um ano. O primeiro ano sem o namorado de juventude, o companheiro de vida, o amor que jurei ser eterno. Meu porto seguro. Comecei nesse mesmo dia me preparando em ligar para os pais dele, a avó, que sempre me amou e toda sua família. De ser amparada por essas mesmas pessoas, e todos meus familiares. Não seria fácil, nunca foi até o momento. Um ano, e ainda não disse adeus.
Pensar nele me fez me sentir bem. Lembrar de coisas boas era, sem dúvida, mais gratificante, como aprendi a fazer com minha mãe. Sim, definitivamente, tentar ir às reuniões é a melhor escolha.
Esperei que tia Luíza descesse para avisá-la que depois de meses, sairia ao sábado para fazer uma atividade que eu mesma escolhi, e que muito provavelmente, só precisaria de sua carona, no máximo. Já conseguia visualizar seu sorriso e o abraço quente que sempre lembrou o de minha mãe. Mas não foi isso que vi enquanto ela descia as escadas. Era completamente o oposto.
— Boa noite, garotas — Igor abriu a porta rapidamente e a fechou sem nenhum barulho. Observei ele passar do hall e correr com a jaqueta na cabeça até seu carro.
Julia estava com o rosto inchado e vermelho. Além de um grito assim que subiram, a conversa parecia ter sido pesada, mas calma. Ela desceu batendo os pés, e se jogou no outro sofá, os olhos vidrados no chão.
Já tia Luíza estava com os cabelos arrepiados, coisa difícil de ver até mesmo de manhã. Ela parecia exausta. Foi rapidamente à cozinha, voltou com um copo de água e pediu que Alice subisse. Logo depois se sentou ao meu lado, os olhos na chuva e no asfalto molhado.
— Eu nunca proibi que vocês fizessem o que queriam. Claro, no limite, mas sempre puderam fazer tudo. — Ela ficou um bom tempo sem falar, a respiração pesada, e então voltou: — Tudo que peço é que se protejam. Ter um filho nessa idade, não é bom, mas é o menor dos problemas. Sexo sem camisinha também pode transmitir doença.
Ficamos as três em silêncio. Não se aplicava à mim, mas outrora já havia. Com 16 anos, ela conversou comigo, uma palestra, praticamente. E logo depois com Pedro, e então com nós dois. Com segurança e responsabilidade, e claro, com o tempo. Nada de forçar o que não era necessário na época.
Percebi que o assunto havia acabado e que a discussão no andar de cima tinha sido bem didática, pois ambas se levantaram quase no mesmo instante. Julia subiu batendo os pés, tia Luíza cruzou os braços, ajeitou os fios bagunçados e piscou para mim.
— Como foi seu dia, querida?
— Normal. A consulta foi boa. E o seu?
Ela olhou para a escada, novamente para mim e respirou o mais fundo que pôde.
— Difícil, mas passa. Sempre passa.
Na cozinha, tomamos chá e decidi não falar das reuniões, assim como ela não tocou no assunto Julia e Igor. Apenas demos risadas e ouvi algumas de suas aventuras com minha mãe de quando eram adolescentes. Ela também chorou no meu ombro, queria saber onde errou. Deixei claro que com as garotas, em lugar nenhum, e comigo menos ainda. Ela agradeceu, subimos concordando que o dia seguinte seria bem melhor.
Quando entrei no quarto, só tinha uma certeza dentro de mim: era difícil, muito difícil. Mas iria passar. Sempre passa.
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Filhos do Amanhã
RomanceComo lidar com a perda? Helena não sabia, nunca soube, nem procurou descobrir. Perdeu o namorado e decidiu se isolar, até um dia finalmente aceitar participar de reuniões de apoio. Eis que começa uma jornada de se redescobrir e aceitar as mudanças q...