Curiosidade

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 Inocência genuína é entregar-se a distração só por curiosidade. Ramificar o caminho para observar flores caídas, bichinhos de patas e troncos retorcidos. Tamanha a imersão da menina curiosa que nem notou há quanto se afastou de seus amigos, tão pouco imaginou que, em noite escura, a luz do lampião chama atenção de outros curiosos além de si. Nem ouviu os passos ritmados se aproximarem cutucando o chão de folhas secas, mas não pôde ignorar o som da profunda voz em rouquidão ecoar em suas costas.

- Uma ótima escolha de pétalas, mas precisa rever suas raízes.

 A imersão acaba, o coração acelera, o montinho de pétalas e raízes na mão da menina cai enquanto as palavras atravessam o crânio de um ouvido ao outro, fazendo crescer um vazio no estômago e a repentina ciência de que há muito estava só. Como se tivesse saído forçada de um sonho, tudo ao seu redor toma forma aos poucos, as pernas tremem ao erguer o pequeno corpo e, tentando não demonstrar o desespero, dá meia volta em direção a rouca voz e se depara com uma grotesca silhueta há poucos passos de distância.

- É muito perigoso se perder por aqui criança. Sua luz pode atrair muitas criaturas perigosas. - A silhueta se aproxima com cuidado e é parcialmente tocada pela luz do lampião, revelando uma velha coroa quebrada, emaranhada em poucos fios na cabeça e um rosto fortemente marcado pela crueldade do tempo. Os olhos são uma depressão indistinguível àquela distância. - Mas não se preocupe. - Continuou. - Eu posso ajudá-la em seu caminho.

 A menina traz o lampião perto de si e, sentindo-se suspensa, dá um pequeno passo para trás. Sem saber se está queimando por dentro ou congelada, responde a ameaça quase em sussurro.

- Eu agradeço...mas conheço o meu caminho. - Não sabia, o corpo se move em direção oposta a silhueta, saindo sem desviar o olhar. Se aproveitar a distância, pode sair depressa e encontrar abrigo em seus amigos, só precisa andar pelo caminho que veio e não olhar para trás. Mas desiste.

 Viver com medo pode ser perigoso, porém o que mata mesmo é a curiosidade. Ela volta a encarar a silhueta e não resiste em contar o que sabe.

- Eu já ouvi histórias das criaturas da floresta... - Engole seco - E também ouvi histórias sobre você.

- É mesmo, ouviu histórias sobre mim? - Sutilmente, o ser misterioso se afasta da luz e vira silhueta novamente - Então me conte, criança. Quem eu sou?

 A virtude dos que querem saber de tudo é justamente não saber onde o limite está. Ou são barrados por ele, ou acidentalmente o ultrapassam.

- Você é a Velha Rainha. - Reajusta o tom da voz, tentando soar menos amedrontada. - Uma bruxa da floresta que testa as crianças perdidas. Quem não souber responder suas perguntas é levada para sempre.

 Uma risada interrompe a criança como se um saco de poeira fosse espremido em parcelas, a silhueta se curva como quem sente dor, mas recupera o fôlego em euforia. - "Levada"? - A bruxa avança em direção a criança recebendo toda luz do lampião que revela um corpo de mulher idosa em um vestido rasgado e sujo arrastado pelo chão por oito patas de aranha longas e finas. Ombreiras grandes contrastam os braços também finos e longos, ostentando grandes mãos ossudas e frágeis. De repente, para de andar em direção a criança e projeta o pescoço de pelanca enrugada até poucas polegadas do pequeno rosto. Seus olhos são grandes buracos de uma escuridão tão profunda que refletem o infinito, tão atraentes que distorcem tudo que há em volta como força da gravidade. A bruxa parece enxergar cada reação química no corpo da menina, é impossível tentar enganar a criatura, cada segundo encarando o olhar, sente-se pequena diante a imensidão do saber.

 Sem reparar a menina dá um passo para trás, tentando escapar dos olhos que já parecem ser um só e desequilibra. Só ao sentir o frio na barriga de quem cai em um pesadelo despertou novamente. A bruxa se afasta com cuidado e desdenha a garota.

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⏰ Last updated: Jun 05, 2018 ⏰

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