Refluxo

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Era como se tudo estivesse em câmera lenta.

As ondas no vai e vem, o mar em movimento. O sol enfeitava o oceano com um dourado cristalino. E o céu azul coroava o espetáculo. Da cortina de água formada pelo movimento da onda que se quebrava, saíram Berta e Caio, as estrelas do show. Berta surfava como um raio, fazia poses em pleno movimento, sorria como se estivesse em um comercial de pasta de dente.

Tricampeã mundial, eleita sete vezes a melhor do mundo, nascera num pequeno vilarejo localizado na região costeira do México. Desde pequena fora ensinada a surfar. Logo nos primeiros anos de prática foi batizada pela famosa surfista Irís Galapeño (sua antiga treinadora) com o carinhoso apelido "Sirena de Piedra", que queria dizer "Sereia de pedra". "Sereia" pois vivia no mar, surfando até o anoitecer; "de pedra" porque tinha pensamentos e opiniões firmes como rocha, não voltava atrás de nenhuma decisão.

Deslizando da base da onda diretamente para o topo, Berta se mantém no ponto mais alto do fluxo, manobrando a força que cruzava sua prancha com o pé direito plantado firmemente na dianteira. Ela parecia flutuar pelo oceano. Seu sucesso no esporte sempre fora tão natural quanto o ato de respirar.

Caio vem logo atrás. Segue a manobra de Berta pondo ainda mais velocidade na execução. Desce até a base da onda e arranca desgovernado rumo ao topo. Fugira de casa aos 13 anos, época em que sobreviveu de pequenos furtos e mendicância. Aprendeu a surfar com os meninos de rua, que habitavam o coração do pelourinho baiano, terra natal de Caio.

No peito carregava a liberdade e a dor que é ser um nômade moderno. A bordo de sua Kombi conhecia o planeta. Viajava sem parar, pagando gasolina e alimentação com a confecção de artesanatos e venda de doces e salgados genuinamente brasileiros.

Caio tenta saltar da prancha para evitar um completo desastre. Mas sua movimentação estabanada desequilibra Berta, que tomba para dentro da onda. Eles rolam por de baixo da água e são jogados feito bonecos dentre os repuxões do agitado mar de verão. O show acabou. O oceano até parou com suas ondas. E a única plateia que acompanhou o espetáculo foi um par de caranguejos vermelhos, moradores mais amistosos da praia de Nice. Eles amavam a areia quentinha e a ausência de vizinhança. Depois de terem assistido os surfistas tombarem no mar se mostraram muito felizes, pois assim que suas carcaças sem vida chegassem até a areia teriam comida para o resto do ano.

No deslizar das ondas tranquilas, a marmita dos caranguejos vermelhos finalmente chega, só que com um pouco mais de vida do que previam as expectativas.

- Cof! cof! cof! – Berta tossia sem parar.

- Cof! Cof! –Caio se estabiliza, recuperando o fôlego- Você está bem?

- ...

- Berta?

- Me deixa respirar, só um instante...

- Ok, me desculpa.

O silencio não existe em Nice. Gaivotas piam enquanto alimentam seus filhotes; O mar beija a areia e se afasta encabulado; O vento caminha sem pressa pelos arredores desertos. E tudo se repete num ciclo sem fim.

- Ahg! – Caio se levanta numa pirueta desengonçada.

- O que foi?

- Algo me mordeu!

- Está sangrando... – Berta diz analisando o ferimento na panturrilha de Caio. Ela se levanta para não ser alvo também – Olha o desgraçado que te picou ali!

Um caranguejo corre em disparada para então se enterrar na areia.

- Deixa ele ir – Diz Caio, focado no pequeno corte. Limpa a região como se houvesse apenas um pouco de poeira em sua perna. – Não foi nada.

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