Capítulo 2 - Parte Dois

287 54 23
                                    

Se eu tivesse comido nas últimas horas, teria vomitado.

Ignorando os defuntos, foco no olhar azul-escuro que me engole, fazendo meu interior amolecer. Fito o pavor que aquele rosto infantil me transmite. Entreabro a boca, incrédula da visão que tenho.

— Mas que m...?

Jogo-me sobre meus joelhos, dando impulso para frente.

Não é de meu feitio ajudar pessoas do nada, me arriscar por desconhecidos que não se arriscariam por mim, claro, mas não sei ficar parada havendo uma criança em perigo.

Não deixaria uma criança. Não seria igual àqueles que fizeram mal à pequenina Lise Moreau.

— Você está ferida, eu faço isso — resmungo em tom de ordem.

Tiro Dakota de minha frente com um empurrão para ter acesso à menina. Os olhos pequenos vão e vêm até os meus, em uma espécie de tique nervoso.

— Estique os braços, bambina.

Enojada por aqueles ferimentos úmidos, torço o nariz para o cheiro rançoso do líquido escarlate, enfiando a mão por dentre os corpos já frios, avançando sobre os joelhos para frente e para frente, em uma tentativa de alcançar a menina, que parece se afogar nos vestidos antiquados das .

— Vamos, pegue minha mão — sussurro, sem desviar o olhar do dela.

Uma mão magra de dedos curtos e finos cobre a minha instantes antes de eu cair de cócoras ao deslizar os sapatos em uma poça de sangue, escapando por muito pouco de um tiro.

Olho para o lado, encontrando um soldado recarregando a arma para voltar a mirar em mim.

Meu olhar se amplia, mas mantenho minha atenção em tirar o corpo flácido da garotinha pálida, que parece preso abaixo do corpo redondo de uma garota da Elite particularmente pesada. Grunhindo, agarro-a pelas axilas, jogando ao mesmo tempo nossos corpos para trás, meu corpo preso sob o dela.

Ela respira com força, apertando contra a barriga uma bolsa de pele que se enroscou em seu braço. Deduzo que era do cadáver que a pressionava. Trêmula demais para sequer se mover, ela não esboça reação quando a solto, afastando-me somente uns centímetros dela.

— Penny.

A menininha vira o rosto para a mulher, os cachinhos claros balançando com o movimento brusco, mas ela continua em seu torpor assombrado.

Quisera eu que ela estivesse tão absorta que seu olhar tivesse permanecido sem foco, fixo em qualquer coisa que não a criada que me ajudara a evitar um tiro que me poderia ser fatal, pois, em uma piscada, o homem que atirou em mim descarrega o pente inteiro nas costas de Dakota, que usa o próprio corpo como escudo para a menina e eu.

Ele busca outra arma, tropeçando em nossa direção com uma careta raivosa.

Com um arquejo surpreso, viro-me para a mulher que, pela segunda vez, salvou-me. A menina e a mim.

A boca de Dakota se abre, derramando nada mais que um longo filete de sangue, enquanto sua mão pressiona meu casaco com uma força frágil, deslizando até o chão em meio seu sufocar. Sinto meu casaco umedecer com os esguichos de sangue de vários de buraquinhos abertos na pele dela.

Ela fecha e torna a abrir a boca, agarrando meu casaco como se eu fosse uma tábua de salvação, apertando um pequeno envelope em meus dedos e apontando para Penny em plena insistência.

Consigo vê-la formar a sílaba muda, a palavra sem significado inteligível.

"Cor... Cor...".

Ela engasga e se interrompe.

Será que quer dizer que nós devemos ir? Que devemos correr?

— Mamãe! — grita a menininha, agarrando-se à bolsa, enquanto se joga sobre o corpo mole da mulher, as duas sílabas, "mamãe", fazendo meu corpo vibrar em desgosto. — Mamãe, mamãe?

É assim, sem despedida, sem um último beijo ou último "eu te amo", que a mulher se engasga com o próprio sangue, seus globos oculares virando para trás de sua cabeça, seu aperto em meu pulso sumindo.

Ela solta o seu suspiro final.

***************************************

Não se esqueça de clicar na estrelinha!

Artefatos de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora