"Fui apenas pegar um pouco de pó de café e recebi uma notícia e tanto. Eu sempre tento não me envolver em assuntos de tamanha complexidade, mas quando se trata de alguém tão próximo, a gente até se deixar levar. Lethícia vai ser mãe e eu estou um pouco assustada. Não pelo filho. Não pelo Pierre, mas por perceber que a vida de muito gente vai a diante e a minha é presa em meus poucos anos de idade. A cada dia que passa, tenho a sensação que não vou pra frente e sim pra trás. Descubro coisas, revivo outras coisas e sinto que estou sendo manipulada não pelo tempo, mas por aquela pessoa, que me criou. Ou melhor, criou a Maria Clara. Criou essa história perversa e incompleta que não consigo entender."
O sol já havia raiado quando Mario abriu a porta da sala e limpou seus pés no carpete. O cheiro do café tocou sua narina suavemente como uma libélula toca as folhas, e Clara pôde ouvir de seu quarto o bater dos sapatos Loafer de seu pai. Debaixo de um teto onde o sofrimento e a frieza andavam de mãos dadas, Clara reivindicava em prol de sua vida, na pouca esperança de sair ilesa de sua história, onde a agonia e o desespero narravam com sorrisos maldosos.
"Eu sabia que aquele turbilhão de lembranças daria conta de me levar ao mais fundo dos poços. Preencheu em mim todo sentimento que poderia existir de ruim, e coube em cada canto de meu corpo a vontade de mudar."
Todos os dias pareciam anos diante de cada flash de dor que sondava sua mente, e a cada respirada profunda, podia-se notar que seus dias estavam contados.
"Seria estupidez minha, deixar por escrito tudo que estou sentindo e correr o risco de ser conhecida do avesso. Seria muita estupidez, deixar claro aqui tudo que tenho recordado e tudo que parece surgir na minha mente sem eu saber como. Seria realmente muita estupidez."
Essas foram as últimas 45 palavras deixadas na página 62 do diário de Maria. Antes que tudo viesse a tona.
* * *
"Meu pai sempre foi o tipo de cara que esteve presente em minha vida, e eu diria que até demais. Quando eu descobri, não me dei conta que vivi em um suposto cativeiro, rodeado de doces, pequenas idas ao shopping, liberdade física pra ir e vir, mas prisão psicológica, se é que posso dizer isso. Soube que havia algo de errado quando me peguei lembrando coisas que jamais pensei vivenciar, mas como disse, jamais pensei, mas que aconteceu. Eu sei que daqui a um tempo, ele vai vir aqui e vai tentar ler tudo que escrevi. Sei que ele vai agir naturalmente e se passará como o pai atencioso que quer conversar sobre tudo com a filha, até mesmo os supostos namorados que ela poderia ter.
Hoje, segunda feira, eu começo. Começo a deixar aqui, por escrito tudo que tenho passado. Sou estúpida."
- Porta trancada Maria Clara? - Seu pai estava à porta já tentando entrar em seu quarto.Na tentativa frustrada de abrir, esperou que Clara respondesse algo depois de suas 3 batidas na porta.
Vendo que seu pai ainda insistia em entrar, Maria correu para arrumar seu quarto, na intenção de deixar claro que estava se trocando, por mais que não estivesse.
- Eu estava me trocando. - Clara abriu a porta na esperança que ele nem quisesse ver mais que o rosto dela pela abertura.
Mario sondou todo o quarto, em busca de algo a mais. Sua desconfiança era aguçada e seus olhos viam coisas que outros não veriam. Sorriu para Clara chegando cada vez mais perto, quando enfim sentou-se na cama de sua filha, onde as pelúcias tomavam conta de mais da metade do lugar.
- Onde foi de manhã? - Perguntou Clara sem muito interesse em saber onde ele tinha ido.
- Fui comprar pão - A resposta foi rápida e curta, como se já soubesse que ela perguntaria.
Seu olhar estava fixo aos delas e seu sorriso parecia permanente. Levantando da cama, deu aquela caminhada que sempre dava quando ia ao quarto de Maria, parou diante da estante e olhou as fotos antigas que ficavam na segunda prateleira. Dessa vez, nenhum comentário foi feito. Quieto ficou, quieto saiu do quarto, com a mais profunda desconfiança.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Em Memória
RandomComunicação não era lá uma das preferências de Maria Clara. Estabelecer amizades talvez também não. Era na suposta solidão que encontrava alguém de suma importância em sua vida, e com essa pessoa ela vivia e revivia cada lembrança de um passado dist...