Assombro

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- Loucura. – Disse ela. – Pura maluquice. Meu Deus! O que aconteceu?

Não respondi. Coisas explodiam no céu e eu não via nada além de sujeira e alguns clarões. Sabia que estávamos em perigo. Sabia que deveria ao menos correr para tentar salvar nossas vidas, mas também sabia que não adiantaria. Estávamos condenadas.

Preferi passar meus últimos momentos na Terra observando as barbaridades que o ser humano pode ser capaz de cometer a troco de nada.

Tenho existido no meio do nada. Talvez você tenha me visto por aí, procurando por uma saída em meio à escuridão. Talvez eu seja invisível para você. Mas o fato é que eu existo.

O que significaria essa existência? É consciência, é algodão doce? Não, certamente que não é doce. É zombaria fazer esses questionamentos? Sei que às vezes vou longe demais com as brincadeiras. Pelo menos eu ia, se é que a minha ideia de antigo "eu" não se misturou com as histórias dos outros.

Onde é "aqui"? Seria essa a sua pergunta, se pudesse me ver? Se soubesse sobre mim? Estar aqui tem sido como gritar para o ar, mas eu não importo.

Aqui é diferente de tudo o que já imaginei, mesmo tendo sonhado com todos os dias com o que seria de mim, de todos nós, quando finalmente sucumbíssemos e morrêssemos como tantos desejavam. Odiar-nos parecia estar em seu sangue, seu DNA, ainda que eu não me lembrasse de ter cometido nenhuma ofensa contra ninguém – ninguém mesmo.

Foram quantos anos mesmo, a propósito? Talvez doze. Esse é um número familiar. Ah, sim, eu estava a dois meses de fazer doze anos. Ansiava por isso, mas não sei mais por quê. Fui deixada com as memórias que preciso ter, imagino. Aparentemente, estou aqui para lembrar as pessoas daquilo que elas precisam saber, e nada mais.

Não estou explicando direito, estou? Isso não é exatamente o que prometi fazer.

Estar aqui é estar em muitos lugares ao mesmo tempo. E antes de explicar o resto quero levar você a uma reflexão sobre o que se entende por assombração. Ainda que ainda pareça que estou conversando com ar. E quem é mais doido nessa conversa, no fim das contas?

Minha irmã foi a primeira pessoa que me contou uma história de fantasma, que ela aprendeu com o meu tio. Estávamos em nosso quarto, o lugar mais legal do mundo, e eu disse a ela:

- Eu nunca tive medo de escuro. Isso é bobagem.

- Você está mentindo muito. E mentir é feio. – Ela me repreendeu.

- Eu não estou mentindo.

- Bom, pois então você devia mudar de ideia. Existem coisas muito perigosas no escuro. O tio Gregório disse que uma vez ele viu um monstro embaixo da cama...

E pronto. Dez minutos depois eu tinha voltado atrás na minha declaração. Depois desse dia, eu e minha irmã nunca mais dormimos em quartos separados. Mas o status de morta te faz mudar um pouco as concepções de monstros e humanos. Meu tio costumava dizer, quando ficávamos assustadas demais com as histórias dele, que a maturidade fazia isso também, algo que nunca poderei comprovar.

O fato é que, olhando daqui, é mais fácil perceber como as coisas acontecem. De onde vem o ódio. Quem faz com que ele se inflame. Como tudo que houve comigo está intimamente ligado ao que ocorreu também na vida de outros. Ninguém fez nada por eles, eu sei, então por que eu deveria esperar que fizessem qualquer coisa por mim?

Ver não é bem o que me ocupa por aqui. O lema agora é ouvir antes de qualquer coisa. E, nossa, a gente escuta cada coisa quando não está preocupado em ver. Cada suspiro, entonação, vírgula, ponto e pausa. Cada hesitação no meio da frase que significa cada sentimento e cada rima que significa cada raciocínio e cada declaração de amor que não significa nada. (Há também as que significam várias coisas. Elas são bem turbulentas). A gente ouve sorriso. É possível isso? Bom, o som do sorriso da minha irmã eu conhecia bem. Talvez porque eu não olhasse muito para ela. Sempre sabia qual seria sua expressão, então por que me dar ao trabalho?

Então, veja, eu entendo. Eu posso sentir as conexões das histórias, eu estou onde há vida, e por conseguinte esperança. Não vejo de cima, mas de dentro. Bem dentro de todo e qualquer coração. Quer saber o que realmente está errado? Venha comigo.

Neste momento, um menino entrará em cena. Ele tem treze anos e seu nome é Alexandre. Ele está gritando aos pais, implorando por ajuda. Mas não com a boca, não com a voz. Ele faz isso quando bate a porta do quarto, e exclama que não quer ninguém para incomodá-lo hoje. A mãe dele, Virgínia, olha para o teto, perguntando-se de onde vem o seu socorro. Ela sempre pensou que ser mãe seria a melhor parte da sua vida. Mas, sinceramente, no momento apenas está preocupada em descobrir qual é a pior, o que não está lá muito fácil. Parece que nada do que faz é bom o bastante, e queria poder desmoronar à vista de todos, mas não pode fazer isso. É tudo culpa dela. Se ao menos Rogério tivesse escolhido uma esposa melhor...

Ah, Rogério. Ele é o único que terá uma noite satisfatória. O que lhe vem à imaginação a partir disso? Bom, significa apenas que ele encontrou um ombro amigo. Uma pessoa que não vai usar suas palavras contra ele depois. Seu pai. Eles não se falavam há tempos, mas fizeram as pazes hoje.

- Filho, você não é o primeiro e não será o último a enfrentar isso. Espere. Persevere. Você tem que estar lá para ela todos os dias. Tem sorte de tê-la encontrado, você não vê? Não existe isso de desistir do amor. Não te criei pra isso. Te criei porque sabia que um dia você seria um exemplo para os outros. É apenas uma fase, vocês vão superar e você ainda vai contar aos seus netos como foi...

Era impressionante mesmo, mas eu deixei de prestar atenção a essa fala inspiradora do pai de Rogério para ouvir o que se passava no andar de cima. Duas mulheres cuidavam de uma terceira. Era uma moça refugiada. Não entendi o nome do país, nem da desgraça. Elas cuidavam da moça, e a moça suspirava... lembrava da terra antes do horror...

Eu sinto a terra. Não preciso do seu nome e identificação para senti-la. Não preciso imaginá-la; ela já existe e está aqui. Ela é tudo aquilo que se imagina de uma infância que é livre. Já sei que sentirei falta dela.

Você me pergunta:

- É preciso estar morto para sentir e ver tudo é isso? É preciso estar além, ter visto tudo, sentido tudo, conhecido tantos quantos quisesse conhecer, é preciso sofrer, é preciso chorar? É preciso ter a vida arrancada na mais tenra idade e no mais tenro pensamento, e todos os sonhos e esperanças interrompidos, é preciso ser transformado numa sombra hiper-sensitiva? É preciso morrer pra si, pra poder sentir a vida nos outros?

Eu diria que não, não seria preciso. Talvez um pouco de solidariedade fosse suficiente. Mas como poderei eu dar-lhe essa resposta? Estou morta.

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Agridoce é a palavra que me vêm à mente quando lembro desse conto, mas acho que terei de concordar com o fato de que ele é mais amargo do que doce.

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⏰ Last updated: Mar 23, 2020 ⏰

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