Escória

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Um homem derrotado.  É o que esse homem desconhecido é. Um bêbado, triste, nojento e podre homem derrotado.  Ele não se lembra de quem era, não se lembra nem mesmo do próprio nome. Ele odeia o mundo, odeia a si mesmo.  Odeia a bebida mesmo enquanto a ingere. Se odeia tanto que faz questão de marcar isso nos pulsos, no corpo. Com lâminas, arranhados, mordidas e até mesmo queimaduras. Seu corpo é cheio de cicatrizes, porém nem todas foram de sua própria autoria. Algumas existiam antes mesmo dele acordar ao relento um ano atrás, principalmente nas costas, chicotadas, pareciam. De quem? Por qual motivo? Ele desconhecia.

Esse homem sem nome vagava de bar em bar desde então, roubando quem podia, até matando se fosse necessário. Tudo para pagar o próximo copo de bebida e a próxima gororoba que ele empurrava garganta abaixo. Ele evitava ser visto e era bom nisso, uma sombra, gostava de se imaginar. Ele mal sabia falar, tanto era seu desprezo por outras pessoas. Seu vocabulário atual é limitado e inclui poucas palavras como "Grana", "Bebida", "Fome" e as vezes nem isso. Ele se comunicava por grunhidos e mal era entendido, mas era só mostrar aos imbecis sua faca e eles entendiam perfeitamente o que ele queria dizer. Engraçado, ele achava, como o medo fala mais do que palavras.

Agora mesmo suas mãos sangrentas agarravam mais uma garrafa de bebida no barzinho mais perto do buraco no chão onde dormia. Dessa vez o sangue não era de mais uma das suas vítimas e sim de si mesmo. Depois de mais uma sessão de tortura própria. Por que mesmo continuando fazendo, o homem se arrependia de cada pessoa que machucava, e para cada pessoa que ele assistia a vida se esvair uma nova cicatriz longa e bonita aparecia em seu corpo. Já existiam mais de cinquenta cicatrizes.

Ele odiava fazer isso. E a culpa o corroía. Tanto que as vezes, ele se sentia obrigado em ajudar alguém, só para poder dormir e seus pesadelos não o fazerem vomitar tudo que comeu horas antes. Coisa que nunca acontecia, ele sempre tem os pesadelos ao dormir. Mas ele nunca desistia de ajudar quando via alguém sofrendo. Sem palavras ou pedidos, somente ações. Ele corria para ajudar a pessoa em perigo, a livrava de quem estava a assaltando e atacando e ia embora, sem esperar agradecimentos.

Hoje era um dia desses. Que ele teria de agir. Pois ao mesmo tempo em que arrotava para arrumar a gororoba engolida e a bebida em seu estômago, ele assistia enquanto uma Trabalhadora de alta classe entrava no bar escuro. Trabalhadores eram a maior parte da população deste país imundo, enquanto que as outras partes eram os Iluminados, ricos e burgueses que faziam parte do Império e/ou o apoiavam, e a Escória, classe onde o Desconhecido se encaixa,  essa classe é formada por desempregados, criminosos, assassinos, ladrões, etc. Não que a classe Trabalhadora fosse melhor, eles são só escravos com um nome eufemista. Afinal, nesse mundo, ou você nasce rico, ou você é escravo. E o único modo de ser um Iluminado é nascendo um ou nascendo com poderes.

A Trabalhadora vinha andando, parecendo procurar por alguém, comparada ao lugar em volta, ela parecia uma Iluminada. Isso por que o bar era sujo, escuro e nojento e mais nojentas ainda eram as pessoas que o utilizavam. Eles se escoram pelos cantos e fingem não ver uns aos outros, ninguém conversa, ninguém observa o lugar em volta. Eles estão lá para beber e esquecer das vidas deles, e isso somente. Só olham em volta quando a porta abre, e agora que a porta abriu e uma Trabalhadora da alta classe entra procurando por algo ou alguém, eles se interessam nela.. do pior jeito possível.

O Desconhecido nota os olhares desejosos e horríveis que os homens e mulheres do bar lançam a Trabalhadora, analisando ela de cima a baixo. O que ela está fazendo aqui?, todos eles pensam, porém nenhum deles diz. Alguns se levantam e se sentam mais perto dela, outros fingem ir até o balcão só pra poder dar uma boa olhada nela. O Desconhecido não se levanta, ele não tem interesse na Trabalhadora, ele já está com os bolsos cheios do roubo que fez essa noite mais cedo. Mas ele se interessa, sim, nas pessoas que a observam, se interessa principalmente nas roupas deles. Roupas de inverno, roupas grossas e quentes. Ele passa muito frio em seu buraco no chão e roupas para um homem com frio valem litros de sangue.

O Corvo (EM HIATO)Onde histórias criam vida. Descubra agora