Uma história de amor

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Cidade dos Sonhos, 1812.

Se me lembro bem, foi numa manhã de domingo quando tudo aconteceu. A mão quentinha de uma moça chamada Liz envolveu meu corpinho e fui colocada em um pequeno saco com algumas amigas. Fomos pesadas. E algumas horas mais tarde estávamos em casa. Em nossa nova casa. Fomos tiradas da sacola e separadas em bando, fiquei com Jena e Pepa. Sim, batatas têm nomes. Vocês humanos se acham exclusivos de tudo, pois bem, vocês não são. Eu me chamo Carol.

Batatas têm nome. Batatas têm pais. Batatas conversam. Batatas se apaixonam. E eu me apaixonei. Naquela tarde de domingo, no dia em que eu provavelmente viraria uma saborosa comida humana, eu me apaixonei.

Ele era um caloroso, aromático e saboroso pão francês. Com todo aquele charme europeu, mesmo sendo apenas um descendente, eu o amei. Meu pequeno e maciço Pão. Eu, uma pobre batata recém comprada, que mal havia saído dos braços da adorável mãe Terra, estava ali, descobrindo a nobreza do amor, em tempos tão difíceis.

Passei a tarde em uma pequena vasilha de barro sobre a mesa observando com admiração o pãozinho do outro lado da cozinha. Minhas amigas disseram que passaria, afinal, logo eu seria um apetitoso lanche, mas assim como Bromeu e Marieta do romance que eu ouvi minha mãe ler para mim durante toda a infância, eu acreditava no nosso amor. E acreditava que ele me amaria também. Infelizmente, batatas não conversam com pães, era o meu fim, e mesmo assim eu não desisti.

A mocinha que me buscou no mercado, Liz, entrou na cozinha. Transferiu eu, Jena e Pepa para outra vasilha e com uma faca afiada começou a nos descascar. Eu não me sentia tão confortável sem minha pele, mas fui alertada de aconteceria. Pobres humanos, mal sabiam que eu tinha sentimentos. Muitos sentimentos para um corpo tão pequeno e por vezes , tão inútil como o meu.

Uma lasca foi arrancada de mim.

A faca pouco afiada mastigou um pedaço do meu corpo e o levou com minha pele. Meu corpo em resposta começou a sangrar. Meu líquido branco junto com minhas lagrimas lambuzaram as mão da jovem Liz, que me picou em quatro partes e me depositou em um recipiente prateado cheio de água fervente. Não demorou muito para eu adormecer.

Acordei mais tarde após receber um choque térmico resultante do banho de água fria que Liz deu em mim. Senti a água fria escorrer sobre meu corpo, agora divido, mole e quente, a esfriar. Senti frio.

Na escola preparatória não avisaram que, nós batatas, sofríamos tanto mesmo sendo tão deliciosas.

Eu, ou melhor, o que sobrou de mim e das minhas amigas, foi colocado em uma tigela de plástico. E fomos amassadas pelas mãos da doce Liz, que cuidadosamente nos transformou em purê. Farinha foi adicionada. Açúcar. Manteiga.

E no fim, éramos massa.
Fomos ao forno.
Era quente, adormeci.

Quando finalmente despertei, eu era uma bolinha doce. Um pãozinho de batata. Eu mal podia acreditar. Surtei ao perceber que eu estava no mesmo cesto que meu crush francês. Eu não podia acreditar. Como era possível tal grandiosidade? O Pão com toda sua gentileza falou comigo e naquele momento eu derreti por dentro.

– Mademoiselle? Estas a cheirar muito bem — disse ele com seu sotaque carregado.

– Oh, muito obrigada... sr?

– Ferdinan. Me chamo Ferdinan, madame. E tu?

Eu estava contendo a emoção ou acabaria derrubando o cesto e se caíssemos, nos mandariam para a lixeira mais próxima, mas meu amor perguntou meu nome e eu estava a saltitar de felicidade.

– Prazer, meu nome é Carol - sorri timidamente.

– O prazer és todo mio, mademoiselle Carol. Eu estava a observar-te quando eras uma lindíssima batata, e digo com respeito, que és um belo pão agora. Estou felicíssimo que estejas aqui. Comigo.

– Hm, eu também estava a observar-te, meu caro. E devo dizer-te que és mui bielo.

– Se importa se eu me juntares a ti em um abraço, mon'amour? — ousou o francês.

– Não mesmo, meu caro — respondi depressa.

Não digo que me corei de vergonha pois, já saí do forno bem coradinha. Aliás, eu estava deliciosamente apetitosa. Vivi minha paixão e morri feliz ao ser saboreada pelo meu rei, junto com meu amado, o nobre Ferdinan. Viramos matéria prima. Ficamos juntos na vida, na morte e para todos sempre.

Brasil, 3512.

Assim que a mulher fechou o livro, Jonas encarou sua genitora sorrindo. Parecia feliz com a história que lhe foi contada.

– Minha mãe sempre me contava essa história antes de dormir. Disse que um amigo da sua tataravó escreveu para ela. Foi um presente de aniversário — disse ao garoto.

A mulher disfarçou, mas seu filho percebeu seu olhos marejados, e sorriu aconchegando-se a ela. Sentou-se em sua cama e segurando sua mão, sorriu. Um sorriso daqueles, que deixa o coração quentinho.

– Essa é a única cópia? — indagou curioso, pois percebera que o pequeno livro, já estava em trapilhos, e que a mulher tratava-o sempre com muito carinho e cuidado.

– Sim. A primeira, e única. Feita exclusivamente para sua tataravô, com todo carinho, de seu amigo escritor — declarou, ainda emocionada.

– Ficarei feliz em ler para os meus filhos um dia. Será um prazer honrar a memória dela sempre que possível — retorquiu entusiasmado antes de se deitar novamente.

Sua mãe abriu um pequeno sorriso em seus lábios e beijou a testa dele. Cobriu-o e saiu do quarto carregando consigo o pequeno livro, que mais tarde seria colocado em uma das enormes prateleiras do escritório da família Mendes. A mulher apagou a luz e sussurrou um "boa noite" antes de finalmente fechar a porta. O pequeno Jonas, se aconchegou em sua cama antes de finalmente adormecer.

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Este conto é um presente de aniversário para minha amiga babekcc. Espero que goste, ily. ♥

A Batata e o PãoOnde histórias criam vida. Descubra agora