Cinco

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Estávamos todos em casa, esperando Pedro e alguns outros amigos chegarem. Ele havia prometido ser rápido, chegaria antes da pizza. Mas então a pizza chegou,os amigos que faltavam, também. Mas Pedro ainda não.

     A ligação que fez meu coração apertar chegou numa sexta feira fria, por volta das 22:30. Uma mulher falava do número de Pedro, o mais calma possível. Sua voz era mansa e tentava me acalmar antes que eu soubesse o que havia acontecido. E quando descobri, desabei, com o prato na mão, telefone e esperança.


     Acordei sobressaltada, a respiração ofegante. Peguei o celular na cabeceira e vi que ainda era madrugada, quase de manhã. Entrei na galeria e abri a pasta com nossas fotos, ou apenas dele, distraído, fazendo graça ou olhando para mim o mais sexy possível. Os olhos verdes, o cabelo tão escuro quanto o breu que fazia lá fora. Em uma das fotos, a mão em direção da lente da câmera, tentando me impedir. Em outra, deitado, um zoom no rosto sonolento, a barba por fazer.

     Tentei chorar, não consegui. Como em quase todas as vezes. Me belisquei, bati de leve a cabeça na parede, aumentando a intensidade uma batida após a outra. Levantei correndo até o banheiro e vomitei o pouco que havia comido. E lá fiquei, deitada, segurando os joelhos e o bile subindo a todo vapor.


Depois de algumas horas, acordei arrepiada, com frio. O chão do banheiro estava intensamente gelado e meu corpo doía. Levantei devagar, lavei o rosto e saí já me jogando na cama. Não demorou para que Julia entrasse, sem bater, como sempre.

     Ela deitou do meu lado, me empurrando para trás com o quadril. Ficamos em silêncio por algum tempo, até que ela bocejou e soltou um grunhido.

     — Bom dia pra você também, Lena.

     — Bom dia.

     Sei que ela esperava que conversássemos sobre a noite passada, mas eu definitivamente não estava afim. Também não a julgo, antes do acidente fazíamos isso. Foi assim quando ambas perdemos a virgindade. Quando ela levou suspensão, ou quando ficamos com o mesmo cara sem ele saber que éramos primas, enquanto ele fingia para as duas que não estava com mais ninguém. Uma corria para a cama da outra, que estava a poucos passos — dividíamos esse mesmo quarto, mas tia Luíza achou melhor que eu pudesse ter meu espaço, depois de algumas crises.

     A verdade é que, no geral, eu havia esquecido que a vida seguiu para todos. No primeiro mês estávamos todos estagnados, mas com o tempo apenas eu fiquei andando a passos de tartaruga e fazendo dos meus dias um desperdício que nunca vou recuperar.

     — Certo... — Ela se levantou e me encarou por alguns segundos, enquanto eu evitava contato visual, fixa no teto branco, já quase cinza e bastante descascado. — Acho que você precisa de um ombro amigo mais que eu. Quer falar sobre isso?

     Esse tipo de coisa me doía mais ainda. Todos tentando me ajudar, estendendo a mão, e eu ainda no fundo do poço, desacostumada com a luz do lado de fora. Conseguia contar nos dedos quantas vezes me abrira com qualquer pessoa. Das vezes que o fiz, foi um desastre, porque chorei, solucei e em alguns momentos ouvi o que ninguém deveria dizer à pessoas que perderam alguém. Só conseguia fazer isso com um profissional, sendo ele um desconhecido que só preciso lidar algumas horas na semana, e sem me abrir totalmente.

     E foi nesse emaranhado de pensamentos que lembrei das reuniões de apoio que Márcia me recomendara. Pensei seriamente se deveria ir. O que eu encontraria lá? Quão preparada estou para encarar uma realidade maior do que já encarei alguma vez?

     — Acho que quero ouvir alguém falar sobre coisas parecidas com as quais passei — fui até a mesa do computador, e da bolsa tirei o convite. Entreguei à Julia e fiquei esperando, mordendo os lábios e apertando os dedos. — A psicóloga me convidou, mas eu não sei se...

     — Eu... — esperei o pior, mas ao ver seus olhos marejados, já podia sentir o bile da madrugada voltar. — Você não sabe como estou orgulhosa!

     Antes que pudesse dizer algo, a senti me puxar para um abraço forte. Sobre seus ombros, vi tia Luíza sorrindo, encostada no batente da porta. Depois de alguns segundos, ela se juntou ao abraço e me senti arrependida de ter mostrado o papel, mas ao mesmo tempo preparada para encarar o mundo com ajuda delas.


Depois de uma hora, um banho pensativo e uma comemoração razoável de tia Luíza, Julia e Alice por eu tomar iniciativa de ir à uma reunião de apoio, estávamos as quatro no carro, meus fones de ouvido explodindo The Hardest Part , da banda Coldplay. Podia sentir a grama em meu corpo, eu e Pedro ouvindo a mesma canção sob uma árvore, a promessa de nunca irmos embora da vida um do outro. Os corpos quentes, as mãos entrelaçadas, os beijos demorados.

     Quanto tempo demoraria para que isso fosse um sentimento bom?

     Tirei da bolsa minha pequena agenda, que andava comigo para onde eu fosse, e anotei em uma folha aleatória uma frase da música: "Tudo que eu faço apenas se desfaz, e tudo está despedaçado."

     Fechei os olhos e me permiti ouvir a melodia mais três vezes, enquanto sentia que independente de ter acabado, seria eterno.

Filhos do AmanhãOnde histórias criam vida. Descubra agora