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     Cinco anos se passaram com Letícia vivendo em um corpo masculino. Um corpo que ela demorou para se adaptar. Todo espelho pelo qual passava, ela sentia nojo e enjoo. Desejava enfiar a faca no próprio peito. Um homem que ela havia conhecido por pouco tempo e de repente sumira com seu corpo. Alguém que mentira, enganara, tudo com um interesse. Que tirou de si mesma a própria família.

Nos primeiros meses, Letícia sentiu-se totalmente deprimida. Apenas Fernanda sabia da verdade, e ela lhe visitava sempre. Muitos até mesmo acharam que Fernanda namorava aquele homem alto e bonito, mas não. Era uma amizade que superava as barreiras corporais. Por dentro, ainda era Fernanda e Letícia, aquelas duas que cresceram juntas.

A polícia procurou por um tempo Letícia — ao menos seu corpo. Nada foi encontrado. Era como ele não existisse mais. A família inteira chorou. Era como se ela estivesse morta. Sequestrada por alguém, morta, e depois desovada em um lugar impossível de se achar um corpo.

Hugo acompanhou a investigação, de longe. Fernanda lhe passava todas as informações. E assim os meses foram se passando, com Letícia continuando o trabalho que Hugo exercia. Seus estudos. Até se formar. E conseguir um emprego com aquele curso superior. Ela não tinha escolha. Deveria continuar vivendo a outra vida.

O corpo de Hugo foi engordando com o passar do tempo. Letícia não se preocupava em continuar os exercícios diários. Não fazia no seu próprio corpo, e detestava aquele que vestia. Mesmo assim, ainda havia uma boa quantidade de meninas que demonstravam interesse. Tentou afastá-las. Não gostava de mulheres e tinha trauma de sexo, depois de tudo o que aconteceu. No fim, resolveu dizer que era gay. Era o melhor jeito de evitar algo do tipo. Porém, continuação a chateação. Agora eram homens que o desejavam, e ela não tinha vontade nenhuma de querer ter algo com eles. Por dentro era como se algo tivesse morrido. A vontade de viver ainda era grande, sim, e ainda nutria esperanças de encontrar seu corpo. Mas todo o seu libido, todo o ardor sexual que tinha antes, e a curiosidade, não existia mais. Hugo matou seu desejo e seu amor quando lhe deu um orgasmo, e depois sumiu com seu corpo.

Os anos se passaram e Fernanda largou a padaria. Agora, ela trabalhava como dentista, finalmente. Estudava já há muitos anos, e passou um ano sem conseguir um emprego no curso em que se formou. Mas agora estava tudo bem. Trabalhava na clínica de um dentista muito bom. Sonhava em ter sua própria clínica, mas compreendia que era impossível agora. Letícia dividia apartamento com ela. Era o melhor para as duas. Para Fernanda, que precisava juntar dinheiro para conseguir sua própria clínica. E para Letícia, que não gostava de ficar sozinha.

Então foi em um certo dia em que Fernanda entrou em casa, tirou os sapatos e caminhou até sua melhor amiga. Letícia estava sentada de frente para a televisão, assistindo algum programa.

— Eu vi seu corpo.

A atenção de Letícia sumiu do programa que assistia, se dirigindo para Fernanda. Colocou-se de pé, ainda abismada.

— Você viu Hugo?

— Sim. Ele tem a audácia de se apresentar com outro nome, o filho da puta.

Letícia não conseguia sentir raiva, como Fernanda demonstrava. Por dentro sentia a necessidade desesperada de pegar seu corpo de volta. Não se importava com Hugo. Não se importava com o que ele havia feito durante todo esse tempo. Só desejava que ele estivesse bem.

— Onde você o viu?

— Eu saí do escritório na hora do almoço e eu o vi arrumando um horário no dentista. Depois eu procurei saber o nome que lhe foi entregue. Está se chamando agora Andressa. A consulta vai ser depois de amanhã.

— Eu preciso vê-lo. Conversar com ele.

— Ótimo. Faça isso na consulta.

E foi o que Letícia resolveu fazer. Passou o dia seguinte ansiosa, pensando em como abordaria Hugo. Se seria violenta com ele, o encostaria na parede e o obrigaria a transar com ela para devolver o corpo. Ou se só conseguiria chorar. Não sabia. Não tinha como saber. Tudo dependeria de como as coisas se desenrolariam.

No dia da consulta Letícia colocou a melhor roupa que tinha. Foi uma hora antes do horário em que Fernanda havia dito que seria a consulta. Sentou-se no fundo da sala de espera, vendo todas as pessoas que entravam ou saíam. Viu Fernanda algumas vezes, e as duas trocaram olhares preocupados, confessionais.

Os minutos se passaram. Um quarto de uma hora, depois meia hora. Então, finalmente, o corpo de Letícia — corpo este que ela não via fazia cinco anos — entrou, quase irreconhecível. O cabelo estava diferente, mais longo, e completamente liso. Os sapatos faziam barulho conforme ela andava; saltos altos, demonstrando toda uma imponência que nem todas as mulheres conseguiam demonstrar. Roupa de executiva. Como se fosse alguém muito importante. Ela andou até a recepção, passou um tempo ali, e depois foi para um banco vazio.

O banco ao lado de Letícia.

A mulher ficou pasma com a audácia de Hugo.

Assim que ela se sentou, pegou o celular. Com uma olhada rápida, Letícia percebeu que Hugo digitava para várias pessoas. Assuntos de trabalho. Parece que era agora uma mulher de sucesso. Sentiu curiosidade em saber o que fazia. Mas sentia agora raiva, raiva porque Hugo nem mesmo parecia reconhecer seu próprio corpo! Ele apenas a ignorava, completamente.

— Você é um filho da puta. — Soltou, sem nem pensar muito.

— O quê? — Disse a mulher, aquela voz que ela ouvia todos os dias, um pouco diferente, óbvio, mas a mesma voz. Quase não se lembrava mais como era o tom de sua voz.

— Você. Transou comigo e sumiu com meu corpo. Por que não me devolve? Por que desapareceu? O que pretendia?

— Você está enlouquecendo? — Disse. Sua expressão não era de quem fingia algo para fazê-la passar por maluca. Era de alguém que realmente não entendia nada. — Do que está falando?

— Esse corpo. Ele é meu. Hugo.

— Hugo? Nunca conheci nenhum Hugo.

— Como pode fingir isso? Por que você sumiu? Por que não quer me devolver o que é meu?

— Não tenho nada seu.

— Você não me reconhece? — As lágrimas já começavam a escorrer.

— Não. Esse corpo é seu?

— Sim.

— Ai meu Deus. Eu já estou nele há tanto tempo. Faz quatro anos. Desculpa, eu não posso devolver. Eu já me acostumei com ele, e conquistei tanta coisa... me desculpe, senhor, senhora...?

— Letícia. Eu sou Letícia.

— Eu sinto muito.

Letícia colocou-se de pé e saiu da clínica. Caminhou pelas ruas, vendo as pessoas caminhando uma ao lado da outra, cada uma ocupada com suas próprias coisas. Nenhuma elas imaginava que aquele homem adulto, muito alto, chorava porque por dentro era uma mulher. Uma mulher que havia perdido totalmente seu corpo e não tinha como recuperar. Hugo havia sido um escroto por entregar o corpo dela para uma outra pessoa. E Letícia nem mesmo sabia se lá dentro de si havia uma mulher ou um homem. Só sabia que tinha alguém de sucesso, que não poderia simplesmente ir embora. Seria correto atrasar a vida de alguém?

Caminhou, as lágrimas escorrendo. Nunca mais encontraria Hugo. Não encontraria porque agora ele estava em outro corpo, conhecendo pessoas, transando com elas, usando seu corpo e depois abandonando. Agora Letícia deveria viver para sempre no corpo de Hugo, se aquele fosse seu corpo de verdade, ou se ele havia usado apenas como passagem. Não tinha como saber. Não se conhecia. Não sabia nada sobre si, sobre o corpo que vestia. Sobre o homem que havia destruído sua vida.

Sentou-se em uma praça, chorou. Observou as pessoas passando e ficou imaginando quantas delas viviam no próprio corpo. Quantos Hugos existiam, desejando passear de um corpo para o outro, como se todos fossem uma festa, e você pudesse entrar e sair quando desejasse? Quantos eram Andressas, entrando em um corpo e resolvendo ganhar a vida a um ponto que aquele corpo jamais poderia ser devolvido?

Quantas pessoas haviam dividido sexo, corpos e alma? E quantas pessoas de má índole estavam por lá, e quantas pessoas com crise de identidade, como ela? O mundo era um lugar ruim. E não havia ninguém em quem pudesse confiar. Certos erros nunca deveriam ter sido cometidos. 

O Sexo Dos OutrosWhere stories live. Discover now