Futebol e Torcida

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- MAS FOI IMPEDIMENTO NA PEQUENA ÁREA!

- ESSE JUIZ TÁ ROUBANDO PARA O LUZVERDENSE!

- O JOGO É TODO COMPRADO! NEM DÁ MAIS PRA ASSISTIR!

Todos concordaram que o jogo estava vendido, mas, como já era de se imaginar, ninguém fez nenhum movimento para sair da sala, desligar a TV ou simplesmente mudar de canal e curtir os dramas recorrentes das novelas da Globo. Eu seria linchado se tentasse tocar no controle remoto. Minha mãe lançou-me um olhar frívolo só porque olhei para o controle quando o primeiro tempo do jogo acabou. Credo.

A tradição mais forte na sua casa pode ser o Natal, o Ano Novo ou o aniversário do seu avô centenário, mas, aqui em casa, você pode dar uma espiada em 24 de dezembro e todos estaremos dormindo antes da meia-noite numa casa sem as luzes dos pisca-piscas e sem os enfeites de R$1,99. Mas você pode se surpreender num clássico Luzverdense contra Valquíria. Nem era a final do campeonato da série D, mas eu, minha família e meus amigos estávamos vestindo o branco e roxo do Valquíria, balançando ocasionalmente uma bandeira do time e soprando vuvuzelas em momentos aleatórios.

Não que eu realmente me importasse com o jogo em si, mas tradição é tradição. Começou com meu bisavô e chegou até meu pai. Morreria comigo se eu não tivesse uma irmã tão fanática.

- CHUTA ESSA BOLA PRA FRENTEEEEE! NÃO ADIANTA NADA FICAR COM ESSE JOGO RECUADO.

Eu não entendia muito de futebol, mas essa observação dela pareceu-me condizente. Liv pulava na frente da TV e, como todo mundo, gritava como se pudesse ser ouvida. Minha mãe entrava e saía da sala o tempo todo, alegando que não tinha estrutura para um jogo desses, mas voltava segundos depois só para sofrer de novo. Mel e Arthur revezavam na vuvuzela e na bandeira. Eu só tentava acompanhar o jogo sem dormir no sofá.

O campo era grande demais, verde demais e comum demais. Poderiam inovar colocando uns cenários diferentes como nos jogos de luta e corrida para videogames. Luzverdense versus Valquíria no gelo, na areia, na floresta, numa rua movimentada. Ou o campo poderia ser redondo ou triangular. E um pomo de ouro. Esse jogo realmente precisava de um pomo de ouro para dar uma animada. Não sei por que resolveram investir no futebol sendo quadribol tão mais emocionante.

- MAS É CLARO QUE FOI FALTA! O LANCE FOI CLARO.

- TIRA O ROBSON E PÕE O VANÍLSON, PELO AMOR DE DEUS.

- O VALQUÍRIA SÓ RECUA. ESSE TIME ESTÁ PARADO.

- Eu estou vendo os jogadores correndo.

- CALA A BOCA.

Não sei que magia acontecia em campo para atrair tantos fãs do esporte, mas, aqui em casa, as pessoas comuns transformavam-se automaticamente em técnicos experientes de futebol, apenas para voltar para suas vidas medíocres ao fim dos 45 do segundo tempo. Todos sabiam quais eram as melhores jogadas, quem tinha que marcar quem, quem deveria ser escalado e quais substituições deveriam ser feitas. Uma pena que o técnico, cujo trabalho é saber exatamente esse tipo de coisa, aparentemente não sabia.

O Valquíria era péssimo. Acho que só torcíamos para ele porque morávamos na vila de mesmo nome. Era inadmissível torcer para o Luzverdense.

- ESSE GOL VAI SAIR, EU TÔ SENTINDO.

- VAI, RONÍLSON! VAI, GESIVALDO! CORRE, NEYMAR.

- Mãe, o Neymar não joga nesse time..

- CALA A BOCA.

- AGORA VAAAAAI.

O Valquíria tinha mesmo conseguido sair com a bola do meio de campo e estava alcançando a área, coisa que não tinha feito no primeiro tempo do jogo. Os jogadores pareciam meio perdidos, tanto os de um time quando os do outro. Mas Ronílson era o capitão determinado a tirar o time da miséria. Arthur e Mel deram as mãos, então eu, Liv e minha mãe fizemos o mesmo. Até que eu tinha um apreço especial por esse momento em que todos acreditavam que estar perto e unido com o outro geraria coisas positivas, o que era uma completa bobagem, mas rendia uma cena bonitinha. Só a voz do narrador falando com empolgação as mesmas frases de anos atrás. Ninguém respirava na sala, até os vizinhos calaram as bocas e os rojões. O que era um milagre, já que os fogos nunca...

- GOOOOOOOOOOOOLLLLLLLLLLLL – O comentarista gritou na TV.

- É GOL, AI MEU DEUS, É GOOOL – Liv pulou pela sala.

- GOOOOOOLLLLL – Mel e Arthur se abraçaram, enquanto meu amigo berrava - CHUPA, LUZVERDENSEEEEE

- VEM FAZER UM FILHO EM MIM, RONÍLSON.

- Mãe!

- QUERO PARIR NESSE GRAMADOOOOO

- MÃE.

Futebol faz isso com as pessoas. Toda dignidade, apego e senso crítico ficam de lado até que o juiz apite o final da partida. Nem todo mundo tem preparo. Nem todo mundo entende o jogo e prefere só gritar quando a bola entra no gol.

- Gente, peraí, o gol do Luzverdense não era do outro lado?

Silêncio no recinto, mas o comentarista confirmou a gafe. A TV mostrou os jogadores do time adversário gargalhando no chão, e Ronílson tomando uns cascudos dos companheiros.

- NÃO PODE SER.

- ESSE FILHO DE UMA ÉGUA BAIA.

- O FILHO NÃO É SEU, EU TE CHIFREI.

E assim iniciou a derrocada do Valquíria, que perdeu de 9 x 0.

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