Capítulo Único

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Eu sempre odiei aquele chafariz. Aquela arquitetura tão estrangeira que não funcionava em um lugar como esse. A forma como crostas de lodo haviam se formado em seu fundo, alheias as moedas acumuladas.
Nunca entendi o motivo de você jogar uma moeda todos os dias que me obrigava a ir aquele lugar. Você se sentava nos degraus encardidos e fazia um pedido, não parecia se importar com a sujeira, com os pombos nojentos, ou com os moradores de rua, nada te incomodava, as vezes até compartilhava seu lanche com todos eles.
Mas mesmo assim eu ainda odiava o chafariz, torcia meu nariz toda vez que me acordava cedo aos domingos para ficar sentada no maldito sol da manhã.
É estranho que agora eu esteja sentada naqueles mesmos degraus, mas que você não esteja aqui, tão luminosa quanto o próprio sol, e bem, eu olho através da água turva e penso se em algum daqueles seus pedidos estava que eu fosse alguém diferente.
Pois desde que você foi embora, eu tenho andado uma completa bagunça, e eu sinto falta do seu cabelo ruivo e da maneira como costumava se vestir.
Você se sentia incomodada com os tons de preto das minhas roupas? Sempre me oferecia sua blusa floral, e eu dizia que preferia a morte a vestir aquilo, você costumava rir... mas será que estava magoada?
A blusa floral ainda está em meu guarda roupa, às vezes aproximo meu rosto dela em busca do seu aroma desgastado, uma mistura de produtos de cabelo e hidratantes corporais, eu os compro, mas em mim parecem muito eu e pouco você.
A noite começa a cair e eu sei que preciso voltar para casa, mas a rua parece mais acolhedora, aqui, longe daquelas flores vermelhas, amarelas e azuis, longe dos fios de cabelo em minha escova, da cama desfeita como se tivesse acabado de abandoná-la.
Eu acho que você não vai mais aparecer, por que está me fazendo de tola? Por que não aparece, Valerie?
Em minha mente analiso cada opção possível, cada uma que signifique que você não me abandonou.
Será que foi para a cadeia? Tinham multas acumuladas que você nunca pagava, dizia que não iria enriquecer um estado que não te dava nada... Mas você tinha tudo, era feliz, a sua infelicidade era a infelicidade dos outros, era tão docemente altruísta, acho que nunca te elogiei... Se você estiver na cadeia, será que precisou vender a sua casa? A casa que você abandonou por ter lembranças demais da sua falecida mãe. Eu deveria ter perguntado como se sentia, mas me faltava empatia. Espero que tenha conseguido um bom advogado com o dinheiro, que ele te tire da cadeia e você apareça em minha porta com seu sorriso de meia lua.
Porém, pode ter ido para a praia, você sempre amou o sol, e eu sempre o odiei, ignorei todas as vezes que choramingou pedindo que fossemos passar um final de semana em alguma ilha. Espero que não tenha pego um bronzeado, sua pele branca sempre se tornava mais vermelha que seu cabelo quando teimava em deitar no jardim com o bronzeador melando todo o seu corpo.
Não consigo aceitar a outra opção, eu e seu chafariz largamos a mesma quantidade de água ao pensar que pode ter simplesmente cansado de nós... Será que encontrou o homem certo? Que ele conseguiu consertar as coisas para você? Será que fica confusa ao pensar em mim? Será que mudou a cor do cabelo para que eu não te encontre?
Eu confessei que essa era a minha técnica secreta, sempre que te perdia ficava na ponta dos pés e procurava por um cabelo ruivo com uma mecha esverdeada da vez que, bêbadas, tentamos pintá-lo de roxo, no carnaval.
São tantas opções e nenhuma te traz de volta a mim.
Tentei ir a delegacia, aos hospitais, ao necrotério, mas eu não era família, não era ninguém, então fui chutada.
O relógio diz que preciso caminhar pelas ruas cinzentas, então o faço, pé ante pé, lágrima após lágrima, eu queria estar bêbada para te esquecer, mas já gastei todo o meu dinheiro ficando bêbada anteriormente, e eu queria estar morta para não sentir, mas já morri no exato momento que notei que não voltaria.
Por que você não volta, Valerie?
Não pensou no nosso gato? Ele sempre dormiu sobre os seus pés, ele sempre correu para os seus braços e recebeu o seu afago, eu era apenas uma telespectadora em suas vidas. Quando abro o portão ele corre, e parece desabar ao ver que sou apenas eu, então se embola em minhas pernas e chora.
Nós choramos por dias, apenas nós dois naquela casa que sempre achei pequena, mas que agora parece imensa para uma mulher e um gato, e nós parecemos ter cem anos, ter saído de uma pintura de Van Gogh, com a dor transbordando em cada pincelada, nós dormimos no sofá porque não queremos invadir seu espaço, porque talvez assim pareça que você ainda está lá.
As vezes sonho que você está no chafariz, está no vestido azul que usava na noite que nos conhecemos que está sentada sobre a água, mas ela começa a rodear seu corpo e a te puxar, e você afunda e grita meu nome, mas estou paralisada, só consigo assistir o seu mergulhar naquelas moedas, o bem mais valioso daquele lugar, e silenciosamente desejo.
Que nunca tenha partido.

Nota da autora: E então apareci! Espero que gostem desse conto, estou para postar a séculos, mas ando meio desanimada com a minha escrita. Bem, espero que deem um bom retorno e quem sabe eu não apareça mais vezes! Beijinhos para todos, e não esqueçam de deixar suas teorias a respeito do que pode ter acontecido com a Valerie.

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⏰ Última atualização: Jun 29, 2018 ⏰

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