Anseios (PAUSADO TEMPORARIAMENTE)

[20] Isso Não Se Faz

A mãe de Melissa abriu a porta de sua casa e antes de nos receber, direcionou um olhar inquisidor na minha direção. Ela era uma mulher de meia idade e se parecia muito com a filha. Tinha o mesmo cabelo dourado e os mesmos olhos esverdeados.

- Mãe - Melissa disse, parando na soleira da porta. Ela me indicou com a mão: - Essa é a Analu. Ela vai dormir aqui hoje.

- Ela é da igreja? - a mãe de Melissa perguntou, olhando para mim novamente. Seus olhos pararam na minha blusa decotada. Eu havia devolvido a jaqueta de Melissa já que ela tinha que manter o seu "disfarce".

- Sim - mentiu ela.

Cruzei os braços olhando para Melissa.

- Tudo bem - a mãe dela deu um passo para o lado, abrindo espaço para passarmos. - Seja bem vinda, Analu.

- Obrigada - falei, esboçando um sorriso sem graça.

- Bom... Boa noite, mãe. Vamos para o quarto - Melissa disse tudo muito rápido, me puxando na direção de seu quarto.

- Espera - a voz da mãe dela soou atrás de nós e Melissa se virou em sua direção. Eu fiz o mesmo. - Vocês não estão com fome?

- Já comemos - Melissa respondeu. - Compramos um lanche no caminho.

Ela assentiu e disse, abrindo um meio sorriso:

- Tudo bem. Boa noite para vocês - seus olhos se desviaram para minha pessoa mais uma vez.

Entramos no quarto. Melissa trancou a porta e se virou na minha direção.

- Você parece meio assustada - ela constatou em um sussurro.

Respirei fundo antes de falar, ou melhor, sussurrar:

- Acho que ela não aprovou minha blusa... - fiz uma pausa. - Mas ela parece legal...

Melissa assentiu.

- Eu te arrastei pra cá porque provavelmente ela ia te fazer um monte de perguntas. De maneira alguma, ela pode saber que você bebe e fuma.

Eu a encarei. Acho que isso ia ser mais complicado do que eu pensava.

- Ok...

- E pelo amor de Deus, não diga nenhuma gíria caso for falar com ela.

Eu balancei a cabeça em sinal positivo.

- Em outras palavras: não devo ser eu mesma.

Melissa assentiu, sorrindo.

- Desculpa, mas vai ser assim enquanto eu estiver morando no mesmo teto que minha mãe.

- Eu te entendo - falei, sincera.

- Mas e você? Sua família mora por aqui? - Melissa perguntou, expandindo o assunto.

- Não - eu caminhei até sua cama e me sentei. - Minha família e eu somos de outra cidade. Pindamonhangaba. Já ouviu falar?

- Sim - ela se aproximou. - E você sente falta de lá?

- Mais ou menos - olhei para Melissa. - Eu gosto mais daqui. Santa Efigênia é a minha casa agora.

- Legal - ela se sentou na cama, de frente para mim. - Espero mesmo que você continue por aqui.

Quando ouvi sua frase, eu a encarei mais atenta. O sorriso idiota e automático surgiu na minha cara de repente.

- Por quê? - perguntei.

- Porque você é uma boa pessoa. É compreensiva. Inteligente. Eu gosto da sua companhia.

Meu sorriso estava gigante agora, mas ainda assim, eu falei:

- Você é bem controversa. Dizia que não queria ser minha amiga e agora quer que eu fique na cidade...

Melissa deu de ombros.

- As pessoas mudam de ideia, não é?

- É. Não tiro a sua razão.

***

Eu ainda estava "hospedada" na casa de Melissa na tarde seguinte. A mãe dela tinha saído para o trabalho de manhã enquanto nós duas ficamos sozinhas por lá. Heitor nem apareceu, o que me fez constatar que talvez ele não vivesse ali com tanta frequência.

- Estou terminando... - Melissa avisou, a ponta do lápis riscando os lados da folha do caderno.

- Ainda bem. Já estou cansada de ficar nessa posição - reclamei, sem tirar os olhos dela.

Ela estava desenhando o meu rosto. Melissa havia decidido fazer isso de uma hora para outra e eu acabei aceitando. Como futura artista plástica, eu tinha que apoiá-la, não é mesmo?

Ela terminou poucos minutos depois e aí, me mostrou sua obra de arte. O desenho ficou perfeito. Os traços muito bem definidos e realistas. Ficou literalmente a minha cara.

- Garota... - falei, apreciando seu desenho. - ... Você é muito talentosa.

Um sorriso genuíno acompanhou o seu agradecimento:

- Obrigada. Você gostou?

- Claro que gostei. Ficou perfeito.

Melissa deu de ombros como se não fosse nada demais.

- Não fiz nada sozinha. A modelo também ajudou muito.

Meus olhos encontraram os seus ao mesmo tempo em que meu coração deu um pulo. Ela estava flertando comigo ou eu estava ficando doida? Confesso que essas reações que eu sentia perto de Melissa estavam me assustando, pois eu estava perdendo a noção das coisas.

- Eu posso ficar com ele? - perguntei após alguns instantes.

- É claro - ela olhou para mim com certa gentileza no olhar. Depois arrancou a folha do caderno e me entregou. - É seu.

- Valeu.

Enquanto eu observava o desenho com mais atenção, senti os olhos de Melissa no meu rosto. Ela continuava me encarando e como se não bastasse isso, um silêncio constrangedor surgiu entre nós. Eu olhei para ela de volta. Juro, minha mente não estava funcionando direito naquele momento.

Antes de dar conta do que eu estava fazendo, me deixei levar pela leve sensação de embriaguez e quando vi, a respiração de Melissa estava batendo no meu rosto, com meus olhos focados em sua boca. Cortei essa pequena distância e encostei os lábios nos de dela, sentindo-os macios e tentadores.

Esse toque durou apenas alguns segundos, pois Melissa desviou o rosto e me olhou antes de eu colocar a língua em sua boca. Eu vi uma mistura de surpresa e de descrença em seu olhar.

- ... Por que você fez isso? - ela perguntou, quebrando o silêncio.

- Eu...

- Você não podia ter feito isso! - ela me interrompeu, exaltada. - Não é porque eu não estou com alguém que você tem que se aproveitar da situação!

Olhei para ela de olhos arregalados. Eu não entendi essa mudança de humor tão repentina.

- Você tá louca? Isso nem foi nada!

- Não importa! Isso não se faz, ok?!

- Tudo bem - joguei seu desenho bruscamente no chão e fiquei de pé em um pulo. Logo saí de seu quarto, fazendo questão de bater a porta com força. Àquela altura eu já sentia meu rosto quente.

Em instantes deixei a casa de Melissa para trás, com uma vontade louca de socar minha própria cara.

Eu devia ganhar o prêmio de burra do ano.