Capítulo 4

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Ele estava sonhando. E havia uma mulher no descampado. Essas eram as únicas certezas dele naquele momento. As únicas certezas entre névoa, flores e estrelas cadentes na penumbra, se misturando como um pincel mergulhando em um copo d'água, aquarela se espalhando por uma fina camada de papel. As luzes incessantes do céu negro cintilavam e refletiam ao longe, tocando a pele pálida da aparição.

O garoto andou até ela, a postura relaxada, embora o coração batesse forte no peito. A entidade de cabelos negros se virou em meio à neblina, parecendo confusa mas confiante, enquanto ele a analisava cada vez mais perto com seus olhos dourados. Era um sonho mais nítido, porém, ainda não conseguia distinguir os traços da dama à sua frente. Mas algo ainda o atraía, ainda o fazia querer dar uma espiada por trás do véu que separava a fantasia da realidade. Era como se fossem velhos conhecidos, alguém sábio em quem podia confiar. Parecia jovem e ao mesmo tempo velha como o próprio mundo.

Mas ele não a conhecia; não fora dos sonhos oníricos e espetaculares que o faziam passar horas pintando ou ouvindo uma canção. Talvez fosse um fantasma, uma alma perdida ou uma deusa, ele não sabia ao certo. Nem tinha certeza de que seria bom saber. Apenas sentia um misto de nostalgia, paz.

Apenas quando estava a dois passos de distância dela, o garoto estendeu a mão, e se surpreendeu ao ver a dela se erguer para tocá-lo. Eles estavam tão próximos.

- Quem é você? - sua voz soou grave, baixa, como um sussurro do vento durante uma tempestade.

A mulher sorriu, de uma forma sinistra e bela, como uma velha conhecida, quase de forma maternal. E tocou a névoa entre eles, agora parecendo tão sólida quanto uma muralha. Um limite.

A aparição olhou por cima do ombro, para o último resquício do sol que acabara de se por entre as montanhas cobertas de neve. E desapareceu. Despedaçada como uma flor no outono, como se nunca tivesse estado lá.

Então Ethan Starlet acordou em alerta, os olhos marejados e um aperto sufocante no fundo do coração.

☀️

- O QUE ESTÁ ACONTECENDO? - Ana berrou, quando Lola a forçou a se sentar no sofá, passando as mãos pela cabeça.

- Ana, querida... - a tia tentou, a voz falha, mas a menina virou o rosto para a escada, tentando organizar os pensamentos.

Havia acabado de ver uma criatura de dois metros de altura ser assassinada a sangue frio por um homem estranho com uma espada. E essa parte nem era a pior! Como Lola encarava aquilo como se não fosse nada?!

- Eu pensei que... que estivesse louca! - a jovem passou as mãos pelo cabelo. - Mas ele... Ele tem uma espada e...!

- Sim - Richard falou, simplesmente, assentindo.

Pelos céus, ele só podia ser louco. Todos só podiam estar loucos. Teriam todos os seus sonhos malucos se tornado realidade? Ana sentiu uma dor pungente na têmpora.

- O que era aquilo? - perguntou, tentando controlar a respiração.

- Um Storumm. - o homem respondeu, tranquilamente. - Criaturas das trevas, eles...

- Richard! - Lola interrompeu, jogando uma almofada em seu rosto.

- Já passou da hora de ela saber, Lola.

Ana se levantou.

- Eu saber do quê?

Richard lhe lançou um olhar cauteloso, mas não respondeu, apenas balançou a cabeça. Mas agora ele teria que explicar.

- Você mesmo disse, - ela suspirou. Não iria surtar ainda - não iria surtar mais. - eu fui jogada no meio dessa confusão e preciso de respostas.

O homem refletiu, passando as mãos pela cabeça enquanto Lola o observava, mas desviou o olhar assim que ele a encarou. Pareceu motivação o bastante, pois Richard respirou fundo antes de dizer:

- O mundo que você conhece é só uma parcela da realidade. Seu pai era...era como eu. Um guerreiro de Deraia.

Ok. Era um bom momento para o cérebro dela fundir?

- Dera o que? - balbuciou.

- Deraia. - ele repetiu, pacientemente. - Somos Seelie, um povo feérico.

- Não. Não. Não. - foi a vez dela de passar as mãos pelo cabelo. - Meus pais não eram nada disso.

- Sua mãe. Seu pai e Lola são humanos.

Humanos... Feéricos. Socorro! Ela devia estar drogada. Tinha que estar. Mas agora, uma dúvida importante surgiu, e esta ela não poderia ignorar.

- Mas cadê as orelhas pontudas e as asas?

Richard a olhou, surpreso, antes de retrucar.

- Não temos asas. Nosso povo não as têm, somente as fadas Unseelie. E as orelhas aparecem quando passamos pelo portal.

Ana virou a cabeça devagar, franzindo o cenho. Um risada rouca e curta saiu de sua garganta, mas não sabia se era por desespero ou pela cara do homem à sua frente. Talvez os dois.

- Pare de falar essas coisas - falou, com um fio de voz. - Isso é tudo uma grande pegadinha. Estou sonhando.

- Você não está sonhando, Ana Foster.

Seu pulso pareceu pesar quando ela se lembrou do que ali pendia. A pulseira prateada reluzia com seus cristais, e Ana quase sentiu como se estivesse queimando.

- Não tire isso! - Lola deu um grito agudo ao ver a sobrinha forçar o fecho e então arremessar a jóia no sofá.

- É amaldiçoado. - sussurrou, mais para si mesma que para os adultos na sala. - Todas aquelas coisas que vocês falaram... Aquela coisa lá fora...

A tia respirou fundo, mas não prolongou a discussão:

- É melhor você ir dormir.

Típico de adultos que não queriam responder uma pergunta impertinente. Mas aquela era a vida dela, e não era mais criança.

- Como posso dormir com tudo isso acontecendo? Além disso, eu nem jantei!

- Vamos falar sobre isso amanhã. Prometo.

A jovem colocou uma mão na cintura, erguendo uma sobrancelha grossa.

- Está querendo bancar a adulta agora?

- Estou querendo que me escute. - a mulher ergueu a voz pela primeira vez em muito tempo. Ana desistiu de falar. - Aquilo lá fora descobriu nosso paradeiro. Outros podem aparecer.

Ela nem precisou perguntar o que estava estampado em sua cara.

- Há mais, sim. Procuram feéricos como Richard e você...

- Eu não sou... isso. - a garota interrompeu, respirando fundo. - Eu só queria ir para a faculdade.

- Você vai.

Richard olhou para Lola, os olhos dourados conversando com os azuis dela. Pareciam ter uma antiga sintonia, mas não foi preciso muito esforço para entender o que diziam. A vida de Ana Foster mudaria para sempre a partir dali.

Ela então segurou as lágrimas que ameaçaram cair, subindo as escadas para seu santuário.

☀️

Aurora | Adhara: Deraia - Livro IOnde histórias criam vida. Descubra agora