Ela terminava de completar a garrafa de térmica de café enquanto ele observava, impaciente, as últimas notícias sobre o mundo dos esportes em um jornal.
Nós nunca conseguimos sair no horário que combinamos!
Enquanto ele resmungava em pensamento, Iris corria para retocar, pela quinta vez, seu batom. Como poderia sair sem ter certeza de que o batom estava bem passado? Isso era inconcebível!
Aproveitando que estava em seu quarto, resolveu trocar sua blusa mais uma vez, pois, por maior que fosse a vontade de estrear uma nova peça, não conseguia se desapegar da boa e antiga 'blusinha' que a acompanhava nos passeios de domingo.
Luiz tomou um gole de café se preparando para a resposta a tão temida pergunta:
— Vamos sair hoje ou não?
— Calma, Luiz! Disse que já estava terminando. Ficou bom?
— Claro. Não sei porque compra tanta blusa e só usa essa. – continuou resmungando de tal forma que quase não conseguia ser compreendido. Talvez essa realmente fosse a sua intenção.
— Vamos então, eu to pronta.
Era assim todo fim de semana: Luiz sabia que, independente do quão cedo sua esposa começasse a se arrumar, nunca estaria pronta dentro do horário previsto. Tentou, por vezes, diminuir suas expectativas sobre a pontualidade dela, marcando mais cedo embora pretendesse sair mais tarde ou lembrando-a do compromisso fixo que já perdurava por anos. Não adiantou. Agora, ele apenas a esperava fazendo alguma outra coisa para se distrair, como ver TV ou ler o jornal, tirando as inúmeras vezes que pegava no sono – o que acontecia com uma frequência incrível. Perdeu a fé de que ela conseguiria, um dia, se adiantar, mas nunca perdeu seu costumeiro hábito de resmungar por conta de seus atrasos.
Todos os domingos eles arrumavam suas coisas, já separadas a dedo no dia anterior, para ver o por do sol na praia de Copacabana. Às vezes nem viam o sol, que insistia em se esconder nas nuvens que bloqueavam todo o seu glamour. Mesmo assim, lá estavam eles. Juntos, mais um fim de semana, mês após mês, ano após ano.
O tempo sempre foi algo muito relativo para aquele casal que já tinham completado mais de 50 anos juntos. Não poderia revelar a idade deles, principalmente de Iris, que nos cafés da manhã, quando o assunto 'velhice' surge, sempre diz:
— Deus me livre de ficar chata quando for velha!
Seu Luiz, embora não tenha o costume de esconder dos outros sua idade, ensinou a todos os seus netos que ele tinha 25 anos (embora falasse a verdade sobre os pais dos seus netos, relevando que tinham 35 ou 40 poucos anos). Assim, até eles crescerem o suficiente para entender que seu avô não poderia ser mais novo que seus próprios pais, Luiz mantinha sua juventude garantida.
Já fazia algumas semanas que eles percebiam que um jovem casal estava 'copiando' o programa deles. Sempre sentavam próximos o suficiente para que a conversa entre eles não fosse segredo.
O sol já estava indo quando o silêncio que Iris e Luiz mantinham foi interrompido. O garoto se declarava de tantas formas para a menina que Iris mal podia contar quantas comparações ele tinha feito. Em retribuição, a garota sorria e continuava o jogo, que, a essa altura, mais parecia uma competição.
Enquanto ela dizia que seu amor por ele tão forte como aquelas ondas, ele a surpreendia dizendo que seu amor era extenso como o azul que cobria o céu. Grãos de areia, gotas do mar, estrelas no céu... Nenhum elemento foi deixado para trás nas declarações deles. A criatividade era tanta que deixou o outro casal desnorteado.
Iris só observava, acompanhando o ritmo das declarações, já que falavam tão alto que não pareciam estar tão colados. Aquele amor parecia tão lindo, era como se eles não tivessem nenhum problema.
Minha juventude! Época sem restrições com meus doces que tanto gosto e que eu não costumava ter essa bendita dor nas costas. Como era bom! Esse dois estão aproveitando tão bem a presença um do outro. Na minha época as coisas não eram assim...
Lembrava-se de como tinha sido seu namoro, seu noivado e casamento. Como tudo tinha passado tão rápido! Mas não parecia ser nada igual com o que ela estava presenciando ali. Nunca tinha competido e demostrado seu amor assim.
"Só vou desligar depois de você...!
Ah, não! Eu te amo mais. Desliga você.
Não...Eu amo!"
Em sua época de juventude sequer existia um telefone para fazer esse charme. Mas, mesmo se tivesse, certamente eles não teriam feito.
Enquanto o pensamento de Iris ia longe, Luiz resmungava porque o jovem rapaz estava atrapalhando a linda vista que ele tinha para o mar, exatamente naquele lugar que eles sempre iam. Não era por acaso! Sempre venerou a natureza e sabia que ela merecia ser admirada. Não tinha sido feita para isso?
Recolheram suas cadeiras e sombrinhas para voltar para casa. O sol tinha se ido, mas o jovem casal não. Os deixaram aos beijos enquanto caminhavam em direção ao carro.
— Para de correr Luiz, você anda muito rápido.
— Você que anda muito devagar. – falou entre os dente, brincando.
Ninguém conseguia entender porque ele sempre andou tão rápido. Dizia que ia no mercado e em poucos minutos já tinha voltado, parecia usar um tele transporte quando andava a pé. Mas, se estivesse com sua esposa no mercado, ah! Não adiantava esperar, pois demorariam meio século.
Era ela colocando pacotes de comida de gato para o pet da vizinha que criou raízes em sua varanda e Luiz as tirando do carrinho de compras. Reclamava muito para comprar a quantidade farta de patê que Iris insistia em dar a gata que acabou sendo mais sua, depois de tanto mimo. No final das compras, ela o vencia pelo cansaço e eles traziam comida de gato em abundância. Mas, a verdade é que, mesmo quando ela não estava fazendo compras com ele, o carrinho ficava cheio de patê. Ele podia até errar o sabor ou trazer um petisco de cachorro, mas nunca deixava comprar.
Os meses se passaram e o casal continuava com seu tradicional passeio de domingo. Iris atrasava, Luiz resmungava e por fim, saiam. Chegavam, colocavam suas cadeiras na posição ideal e estavam prontos para apreciar o pôr do sol.
Mas, nas últimas semanas, algo parecia ter mudado. Os jovens que se sentavam a sua frente não estavam mais lá. Pelo menos, agora Luiz conseguia admirar a vista em paz.
— Olha só, não é aquela menina?
Luiz só concordou com a cabeça. Era ela. Não eram mais 'aquele jovem casal'. A garota estava abraçada com outro cara, que por sinal era bem diferente, senão, talvez não tivessem notado isso. Aquelas juras intermináveis de amor pareciam agora terem voado para longe com o vento, como se nunca tivessem existido.
Perceberam o quanto o amor deles era fútil. Embora já soubessem que amor de verdade não se comparava com paixão. Paixão é aquele fogo que muda e invade tudo, te deixando sem chão. Te faz perder o ar e, ao mesmo tempo, suspirar. Você age e fala sem pensar. Isso é estar apaixonado.
Amor é o café que Iris, embora atrasada, não deixava de fazer fresquinho, mesmo que não fosse tomar com medo de borrar seu batom. É o troca troca de roupa para sempre estar bonita para ele. É a impaciência do Luiz que o tirava do sério, mas nunca o fez deixar de convidá-la para compartilhar o pôr do sol. É abafar a voz de dentro dele que o dizia para não ter mais bichos de estimação e colocar no carrinho três pacotinhos de patê.
Amor é o silêncio que os dois conseguiam fazer enquanto admiravam a natureza, por que sabiam que estar ali era uma dádiva, mas estarem ali juntos, era um o presente perfeito.
A verdade é que o amor não pode ser medido, nem comparado, porque o amor que tem limites dura pouco. O maior erro que se pode cometer no jogo do amor é tentar explicá-lo a todo custo.
Agora ficava claro porque eles não eram como aquele jovem casal, tão ocupados em caracterizar o que sentiam... Simplesmente porque se amavam o suficiente para tornar aquele amor inexplicável.
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O esconderijo do amor
Short StoryDescubra neste breve conto como o amor se expressa nas mais simples ações e que nem sempre as melhores e mais sofisticadas palavras são capazes de trazer á tona a realidade de quem ama. Esse conto foi inspirado nos meus avós, Iris e Luiz e é isso qu...