I. Perece-me que em conversas causais perco a noção de tempo - quando não, também, a de espaço - , e caio sobre as calçadas das mentes. E, inevitavelmente, descanso. Há uma atração imersa nas pessoas que têm o poder de cuspir sobre mim bonança, com a intensidade dos raios de sol que aquecem a pele à tarde, com a fronte para as águas oceânicas. Reflete-se na superfície de meus olhos o brilho etéreo e universal: a alma de quem produz oportunidade de fala e a conduz de maneira serena, efusiva e desregrada.
Pessoas que exalam amor despercebidamente têm-me nas fronteiras de meu ser, antes de habitar o opaco mundo que configuro-me.II. Mórbida velhice
Conforto-me às noites de solidão, ao defrontar-me com o que me é passado já. Anuncia-se-me a velhice, a carne a prostrar-se em lampejos idôneos de esperança do nada tornar-se vã coisa. Estou à mercê do que desconheço, avisto-me como um barco à deriva nas águas agitadas e frias da progressão natural da vida. Vejo-me, porém, no fim. (Se é que se pode considerá-lo haver àqueles que sonham).
A juventude me foi, em maior parte, horas lentas e vazias, que me subira à memória como ondas de vento a projetar o inverno pouco distante. Estou cansado, porém busco o ímpeto dos dias passados. Jamais entregar-mo-ei às dores que abatem.
Estou quase a chorar, em caso de haver tempo perdido, coisa passada sem a máscara real da verdade, aquela que se me devia ter sido trazida à face. Escrevo quieto, do meu lugar, pouco atento, com a força que me é oferecida, de tendões levemente retorcidos como dobradiças enferrujadas. Milhares de vidas e de vozes passaram-se, eu as ouvi e vi, tão poucas as que permanecem, muitas as que machucam, no curso natural da vivência, de tudo que se deve haver. Eu sou o sonho quase inútil, nalgum momento o que apurei de todas as minhas andanças virá à tona, juntamente com as partes que me restam corroídas, de todo o legado, o qual, porém, perdurará mais do que a mim mesmo.
Há o vasto céu a noticiar o enigma de muitas noites incógnitas, em muitas das quais sequer preguei os olhos.
Hoje, ao oprimir-me a sensação de quase morte pelos dias tardios nos quais me encerro, retiro do contato de meu pescoço as mãos que me fazem sufocar e mostro que ainda pertenço a mim mesmo. Enquanto a terra não me privar do seio desse mundo, falarei de toda uma solidão que me habita o encostado do peito, que me esgueira como a morte com o desejo de me tomar para si completa e sombriamente.III. Que no dia em que reine a minha morte, eu perpasse o desfiladeiro da memória e as pequenas ações que produzi fluam no peito de quem me tivera.
Não quero que deixem-me padecer ao poder dos vermes sob a terra. Não anseio por cortejo algum. Não desejo que meu corpo seja velado, que eu esteja exposto como coisas a serem avaliadas nas vitrinas pelo que tantas vezes passei enojado. Quero, porém, que meu corpo crepite em intensa chama e minhas cinzas sejam depositadas ao vento, se possível, do alto de uma imensa montanha. Que eu esteja em contato não com partículas de terra, mas com as de liberdade, que são dadas ao seres que escolheram não temer as horas sombrias. Quero em morte, assim como em vida, ter a companhia do eu que sou puramente.IV. Ao acordar-me nesta manhã, indaguei-me: o que há com o tempo? Finda-se o domingo e, quando se vê, quinta-feira é. Depressamente, esvaem-se os dias. É incompreensível, diante o inesgotável sonhar, padecer por tanto tempo frente coisas vãs que impõem-nos o caminhar. Deixam-se, porém, as coisas primeiras em plano secundário, pelo medo de arriscar-se.
Apercebo: o tempo que preciso confrontar é a fortaleza em que piso para inclinar-me aos sonhos que resguardam-se na obscuridade de meu ser. Que, de todo e qualquer modo, não podem ser senão quem realmente somos.V. O domingo achegou-se timidamente, agudo em sensação para relatar o que pensa e o que lhe falta. Ele sentou-se às margens da cadeira, recostou-se à aresta da mesa, com mãos frias e corpolentas, e dedos dispostos mediante a superfície amadeirada e intransponível, fitou-a inatingivelmente. Suas memórias seguiram-se fragmentadas, porém inflamadas, postas longínquamente às horas que lhe pertencem.
Ela, à sua frente, declinou-se sobre suas palmas de mãos, levemente ásperas, seguramente solidárias, que tatearam-na, a evitar o incauto olhar da crescente monotonia rubra. Já não se mostrara a mesma diante do cair esfiado de choro recorrente, com o empertigado discurso tenaz presente outrora o qual empalidecia-se, exaltando o poder e a pertinência das dores e dos sabores amargos de bocas que se perdem à cada semana. Mesmo as segundas-feiras necessitam do barulho que produz o silêncio, do enxuto e agravante comportamento da solidão que nos agride a face e que nos faz sugar a sensibilidade orgasmática do coração, o eventual amante.A lareira a queimar o madeiro à espera da resposta do que não se perguntou.
Os laços de chamas que se desfazem em meio ao caos a produzir-se.
O desfrutar quieto do gosto esfumaçado da liberdade reta.Desposou-se o domingo com a segunda-feira, e deve-lhe cordialidade.
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Devaneios Incolores
RandomEscritos temporários de uma mente repleta de pequenas, mas condecoradas lembranças. Às horas exaustivas sob guerras pessoais, pinto o cenário de meu peito de uma aquarela incolor. Deleite-se!