E como última opção, seja um piloto

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Mesmo sentando no canto mais distante e isolado do parque, as pessoas me tinham em vista. Era incrível como eu nunca conseguia fugir delas.

Provavelmente estavam assustadas com o sujeito de cara maligna no meio de todo aquele verde, todo aquele sol, atrapalhando a energia familiar, romântica, amigável e tudo o mais. Sabe, não as culpava. Talvez eu devesse ter colocado óculos escuros.

O engraçado foi que, mesmo com a aparência cansada de bêbado, uma criança se aproximou e sentou ao meu lado. Pobrezinha. Pensei que seria melhor sair de perto para poupar pânico à mãe.

Com seus cachos pretos e curtos, a pequena menina balançava as pernas para frente e para trás. Para frente e para trás. Para frente e para...

— O que você quer ser quando crescer?

Distraído do movimento de suas pernas, tive que encará-la. Ela sorriu sem mostrar os dentes (que deveriam estar cheios de cáries, afinal, crianças são máquinas de cáries e choradeira). Quis dizer que já tinha crescido demais para esse tipo de pergunta, mas a pele morena da minha companhia inusitada reluziu de um jeito peculiar e me chamou a atenção.

Depois percebi que era ridículo. Deveria ser suor.

— Um piloto de avião — respondi. E não, eu não menti.

Ela esperou por mais. Suspirei.

— Só que, agora, escrevo livros.

— Sério? — A criança indagou com as sobrancelhas franzidas. — Por quê?

— Porque... — Porque eu era uma máquina de escrever e não conseguia, em hipótese alguma, me livrar do controle que minhas próprias palavras tinham sobre mim. — Porque eu gosto.

— Eu ainda não sei escrever direito, sabia? — Foi a sua resposta.

— Ah, você vai aprender um dia.

— Minha professora diz que sou inteligente, só que falo bastante.

Assenti. Já tinha percebido. Crianças, em geral, não conseguiam fechar a boca e não gostavam de mim, nem quando eu tinha pirulitos de cereja. Ou de morango. Normalmente elas adoravam morango, não adoravam?

— Meus pais falam pra eu ser médica. Mas não quero ser médica.

— E o que você quer ser? — indaguei, curioso.

— Domadora de leões.

Meus aviões eram realmente sem graça perto daquilo.

— Isso é muito interessante.

Ela deu de ombros. Focou o olhar à frente e acenou. Quando olhei também, percebi que o gesto era para uma mulher. Sua mãe ou alguma parente? Ao menos, os cachos eram quase idênticos. Cachos poderiam ser considerados semelhança genética, certo?

Não me surpreendi quando a mulher pareceu assustada.

Levantei do banco. Iria me afastar pelo bem maior. Infelizmente (e constatei isso com surpresa) teria que deixar a geradora de cáries ali. Antes, porém, dei o meu melhor sorriso (o que não era muita coisa) para ela.

— Você pode ser o que quiser. Não se esqueça.

— Você também, moço.

Balancei a cabeça, quase me perdendo na ilusão de que poderia. Ao virar as costas, porém, lembrei do manuscrito abandonado no chão do meu banheiro (talvez eu devesse parar de escrever em lugares assim). Definitivamente, não poderia.

Enquanto eu fosse escravo da minha narrativa, não poderia.

No entanto, ser escritor tinha suas vantagens. O lado bom: eu entraria de graça nos circos (ou zoológicos?), já que agora conhecia uma domadora de leões.

Quem sabe isso me inspirava a terminar o capítulo vinte e dois do meu livro ao invés de discorrer sobre crianças imaginárias e me inserir em situações fictícias com uma moral no final, apenas para tentar convencer a mim mesmo que eu poderia ser o que quiser — inclusive um bom escritor.

Como domar um leão (ou um escritor)Onde histórias criam vida. Descubra agora