Você tem um nome?

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- Você tem um nome? - Ele revida em tom hilário.

- Não, não tenho. - Fala com naturalidade e sem perceber a epera de alguma explicação.

Matheus estranha a resposta, pergunta-se do motivo, mas seu raciocínio está limitado à vontade de voltar pra casa. Prossegue caminhando.

- Bem... você vem?

O garoto segue-o. Após alguns minutos de caminhada e silêncio eles chegam à pequena casa. O menino visando a cidade observa uma enorme nuvem de fumaça negra partindo do depósito. Fita a cena como se ela forçasse uma memória.

- Pode entrar! - Interrompe a regressão da criança - Alí tem um banheiro. Eu vou pegar uma roupa pra vc. Vai ficar folgada, mas é o que tenho.

Prepara um colchão improvisado com edredom ao lado da cama e acende duas velas, uma para o quarto e outra para o banheiro. O menino segue as instruções em um estado de melancolia constante, mudo e sempre com mente distante. Já Matheus gosta de falar, gosta da sensação de ser ouvido, de ter uma conversa. Por anos foi apenas ele o que o fez esquecer disso, por esse motivo arrumava qualquer desculpa pra falar, mas tinha dificuldade pra saber quando era sua voz e quando era seu pensamento. Pensava e tinha medo de que tivesse falado e vice-versa, a criança não responder facilita a confusão. O pequeno sai do banheiro com uma roupa bastante folgada, e com a velha na mão. Nem parece ser o mesmo que encontrara no banco da praça.

Utilizando um guia de saúde ele cuida do ferimento causado pela flecha e torce pra ter feito tudo certo. Em nenhum momento a criança expressa dor ou incomodo.

- Pronto! minha vez de tomar banho, em breve eu volto e abro um enlatado pra gente. Pode escolher onde vai dormir.

Adentra o banheiro, põe a muda de roupa e o guia na pia, tira as vestes imundas, dobra e reserva em cima do vaso. Olha-se pelo espelho e observa suas rugas, suas cicatrizes, suas marcas, tenta projetar como era antes de tudo isso machucando a mente no esforço de recordar. Desde a grande mudança mudou bastante, não exclusivamente seu corpo, mas sua mente. Envelheceu bem mais que sete anos. Liga o chuveiro e se põe abaixo, permite-se sentir a água escorrendo por cada detalhe seu. A água desce pelo ralo avermelhada. Ao se sentir limpo cuida de seus ferimentos, ao contrário da criança sua dor é evidente. Finalizado os cuidados põe sua roupa e sai. A criança já dorme no colchão improvisado. Matheus pega um dos enlatados abre e acorda suavemente o menino.

- Sei que está cansado, mas é melhor vc comer. Toma! - diz estendendo uma lata de pasta nutritiva e uma colher - Deixa metade pra mim, temos pouca comida.

O menino senta, divide o alimento ao meio com a colher e come enquanto seu anfitrião tenta puxar assunto.

- Tivemos sorte, essa lata é recente. Quando começou tudo isso um pessoal viu a oportunidade de ganhar muito dinheiro. - interrompe para uma dúvida - Você sabe o que é dinheiro?

O garoto confirma com a cabeça e entrega a lata com a parte determinada.
Continua o discurso.

- As empresas se especializaram em sobrevivência. Alguns ficaram ricos com isso e puderam pagar pra fugir. Pros que ficaram o valor do dinheiro durou pouco. As fábricas, os mercados, todos os empreendimentos, foram saqueados. Tudo mudou bastante em um curto tempo. Principalmente aqui na cidade. As criaturas ganharam com a autodestruição das pessoas. Até agora eu suspeitava que eu era o último. - há uma pausa - De onde você veio?

Espera a resposta por alguns segundos até perceber que o pequeno dormia. Se animou demais com ter alguém pra lhe ouvir, provavelmente a criança nem entenderia suas palavras se estivesse consciente,  palavras que podem ter sido perdidas no tempo. Falava mais pra si, testando sua memória. O cansaço retorna, o pensamento fica fraco, os olhos pesam e já não consegue resistir ao sono. As preocupações e fantasmas do passado são substituídos por uma vontade enorme de descansar. Assopra a vela e adormece.

No dia seguinte desperta de um sono bem dormido assim como nenhum dos últimos sete anos. Tateia seu criado mudo achando uma caixa de fósforo e uma vela. Ilumina o ambiente e verifica seu hóspede. É surpreendido. O menino treme como em uma hipotermia, sua como queimando em um forno, suas pupilas sobem e suas pálpebras piscam. Tenta despertar-lo empurrando seu corpo e bravejando.

- Garoto! Acorda! Que merda tá acontecendo? Acorda!...

Não sabe agir, não há responde.

A manga da camisa do braço direito fica escura, como se lhe escorresse um sangue negro. Matheus descobre o braço do amigo:

- Droga! Droga! Droga!

No braço, uma marca escura e podre de uma mordida.

MATHEUSOnde histórias criam vida. Descubra agora