introdução

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Ela sentou-se em frente a mim, no sofá de couro desgastado que parecia ter mais anos do que ela, e falou sem parar.
Como sempre, pensei eu.
Falava sobre como a sua vida era triste e miserável e eu permaneci deitada no chão de tijoleira a ouvi-la.
Conseguia cheirar-lhe a alma, aquele odor obscuro a morte que me causava um medo terrível.

-"Parece que nem me estás a ouvir." -comentou, tirando-me dos meus pensamentos.

Ela tinha razão. Não estava a ouvir porque nunca ouvia. Não ouvia porque sabia que ela falava sempre do mesmo, falava sobre como tudo e todos a tinham abandonado e sobre como se iria matar um dia e ninguém iria sentir a sua falta.

-"Tem razão, desculpe."

Ela sorriu e eu sabia o que vinha a seguir, a mesma frase de sempre, que ela dizia todos os dias: "Sou velha, Freya. Sou velha e a minha única amiga é uma adolescente de 17 anos que mora no andar de baixo."
Eu podia levar aquilo como um ataque pessoal mas ela gostava de mim, eu sabia disso, então apenas encolho os ombros.

-"Já é tarde, Sra. Cavender. Devia descansar."- levantei-me e andei até à porta, olhando de seguida uma última vez para trás.

-"Até amanhã, querida."

Sorri e abri a porta que dava para o corredor do terceiro andar, fechando-a quando já me encontrava do lado de fora.

Decidi no momento em que entrei no elevador que iria para a biblioteca municipal ler um bocado, como fazia todos os fins de tarde, logo depois de sair de casa da Sra. Cavender.

Depois de andar cerca de duas ruas e meia, finalmente deparei-me com a fachada do edifício.

Quando entrei lá dentro quase que, por meros segundos, pensei que ele não estava lá. Mas estava. Na mesma poltrona castanha do costume, sempre ao lado da prateleira dos livros de mistério, que eram os únicos que eu alguma vez o tinha visto a ler. O seu corpo magro e de aspecto frágil debruçado sobre um novo livro. Não consegui evitar um sorriso ao lembrar-me de que, em apenas dois meses, o vi a ler todos os livros da Agatha Christie. Todos eles sem exceção.

Sentei-me no mesmo sítio de sempre, numa outra poltrona do outro lado da sala, com uma vista quase perfeita do rapaz pálido que parecia que não dormia há dias. Se não soubesse diria que ele passava as noites ali, sentado com um livro sobre as pernas cobertas pelo fino tecido das suas calças de fato de treino, a viver uma história que não era dele.

Abri o meu livro na página que havia parado da última vez e retomei a minha leitura, sentindo a tensão do seu olhar em mim.

Ele fazia sempre isto, evitava ao máximo olhar para mim quando sabia que eu o estava a observar, mas depois, mal eu desviava os olhos, ele penetrava-me com o olhar mais intenso do que o que eu pensava ser humanamente possível.
Era como se fosse um joguinho de olhares, e ele ganhava sempre.

Havia momentos em que ele se levantava e desaparecia por entre as infinitas prateleiras, voltando depois para o seu lugar e retomando a sua atenta leitura.
Não conseguia perceber o objetivo. Não sabia se ele se levantava para ir buscar um novo livro mas nunca encontrava nenhum que lhe agradasse, ou se simplesmente o fazia para captar a minha atenção.

Pensei que, se lhe sorrisse durante tempo suficiente, ele me retribuiria. Talvez, se o fizesse, conseguiria também ter a sua atenção.
Mas, no momento em que o fiz, reparei que aquele ser humano à minha frente não parecia apenas cansado, ele estava completa e inteiramente exausto.
E nada importava porque nada me poderia ter preparado para aquilo, nada me poderia ter preparado para o vazio dos seus olhos.

E, em apenas uma milésima de segundo, o meu sorriso desvaneceu-se.

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⏰ Última atualização: Jul 31, 2018 ⏰

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