III - Olhos Meus

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— Ótimo. Como estão todos de acordo – riu Poseidon –, vou embora, porque estou atrasado. Adeus rapazes – ele fez uma rápida reverência - Melanie – a garota tomou a mão de seu pai, depositando um beijo suave e respeitoso – Chame-os amanhã apenas, querida.

— É claro, meu pai - assentiu.

Ela compreendia a importância de conservar a calma e a paciência quando se tratava de apresentar os Guardiões a um bando de semideuses com grandes habilidades. Portanto, após a partida de Poseidon, ela apenas se sentou na varanda da Grande Casa, admirando o horizonte amarelado do meio-dia, imaginando como e onde estaria Tritão, perguntando a si mesma o porquê daquela vida parecer tão surreal quando comparada às repetições que estivera exposta durante milênios. Não compreendia a atitude dos Deuses, "Caras inconstantes" era como ela se referia a eles. Por mais tradicionalistas que eles parecessem, nunca se podia confiar nada a eles carregando a certeza de que seria como sempre. Mudavam de lado o tempo todo. "Com os Deuses nunca há exatidão, Lilian" dizia seu antigo mentor, Dédalo, muitos anos antes, quando a semideusa nem sonhava em ser nomeada de Melanie. "São criaturas extraordinariamente crípticas. Não são como os humanos, você não tardará a notar, criança". Naqueles momentos ela curvava a cabeça um pouco de lado, deixando alguns cachos lhe caírem aos olhos, dizendo: "Mas por que são tão gongóricos? Eu não compreendo. Sei que precisam do bem e do mal, mas não são donos de si? Não podem fazer escolhas eternais?", o que fazia seu mentor sorrir, estalar a língua e indagar, entre um gole de vinho e outro: "Você há de aprender, pequena: escolhas jamais são eternais, nem mesmo as suas".

Depois de tantos anos, sentada ali naquele klimos, ela quase entendia o que o sábio queria dizer. Estava tão próxima da verdade, mas tão indiferente a ela... Seus erros a cegavam e a amoleciam. De certo ponto, tornavam-na muito vulnerável e seus inimigos, acumulados ao longo de milênios, sentiam sua fraqueza e esperavam para aproveitarem essa deixa. Ao longe, exércitos começavam, lentamente, a se formar e impérios negros conseguiam voltar a se reerguer. O mal sentia sua abertura e se alimentava de sua debilidade.

Uma mão tocou seu ombro e a fez se sobressaltar. Quíron a observava de cima, demonstrando preocupação e compaixão em suas feições. Ele a tinha como uma amiga muito querida e, como poucos, sabia que ela sofria com suas batalhas internas, trazidas por conta dos anos que a desgastavam e a arrastavam em meio às multidões de caos e medo.

— Como você está?

— Ah, Quíron... - sua voz falhava, carregada de dor, da forma que ela só permitiria a poucas pessoas escutarem. - É tão... Difícil, sabe? Nunca... - Então seu sussurro se transformou em um único, longo e lastimoso soluço, acompanhado de algumas poucas lágrimas quentes, que caíram sem que ela permitisse, mas que logo foram repreendidas com uma força peculiar.

O centauro a abraçou e permaneceu imóvel até que ela se recompusesse. Parado, notou quão frágil ainda era a criança que há seis éons havia ajudado a trazer à vida. A criança de quem cuidara e com quem aprendera tanto. Suas inadvertências com ela eram inextinguíveis. Mas conhecia tão bem o etéreo coração dela, que sabia que jamais o culparia, ou guardaria fel puro contra ele. Sabia também que força era a única coisa que a mantinha viva. E era tão carregada dessa energia misteriosa essa garota. Por vezes, Quiron se sentia uma criança perto dela.

— Eu ficarei bem logo – disse ela, por fim. - O que tem a me dizer? - seu rosto já não trazia mais traços da adinamia que demonstrara há pouco.

Ele sorriu orgulhoso do elo que criaram. Surpreendia-o a facilidade com que ela lia suas expressões. Sentia que, com apenas um olhar, ela seria capaz de desvendar os mistérios que ele carregava escondido em seu interior até de si mesmo.

Filha Do MarOnde histórias criam vida. Descubra agora