O que é o ser humano senão um catalisador de sentimentos desordenados? O que é a humanidade senão um adensado intersocial? Mas como "ser gente"... quando não se tem nada importante para oferecer?
Entre uma filosofia e outra na eleita manhã mais fria desse inverno em Brasília, Sato puxa o pequeno trapo de lã velho até o joelho, descobrindo seus ombros. Seu objetivo não era aquecer-se mas sim o companheiro pastor alemão em seu colo. Os corpos trocavam calor e proporcionavam sobrevida por mais uma noite no chão duro de concreto da Rodoviária do Plano Piloto. Sato cuidadosamente retira a cabeça e o focinho do cão que estava perfeitamente encaixado e quente sob sua axila, dobra as pernas e posiciona seu chapéu velho ao chão a fim conquistar alguma moeda dos transeunte que se apressavam para pegar o transporte público.
O sol já batia no rosto apesar da brisa fria, e seria aconchegante se o barulho dos ônibus e as buzinas dos carros não interrompessem. Em volta, dois mendigos talentosos tocavam e cantavam conquistando suas moedas. A direita, outro recitava salmos e conseguia algum trocado. Mas Sato mantinha seu chapéu vazio há dois dias, quando conseguira um total de três reais para comprar um pastel ao seu companheiro cão.
Ainda bem que eu não preciso me alimentar.
Pensou alto mas seu ânimo ao pronunciar foi tamanho que no máximo o pastor alemão conseguiria ouvir. E se ouvissem, achariam que o coitado estivesse maluco já que a única identificação de sua condição especial fora coberta em seu pulso esquerdo: as letras de fábrica JRX-996 deu lugar a uma colorida tatuagem azul.
Os modelos JRX foram os únicos humanóides que continuaram sua fabricação após a Guerra da Conquista, mas aos poucos foram desmontados um a um. O medo da Inteligência Artificial tomar conta novamente fez a total extinção dos JRX mesmo sendo inofensivos. Esses modelos não tinham versão de combate e serviam com único propósito facilitar o dia a dia da humanidade, seja como atendentes, faxineiros ou garçons. Por isso, a aparência era feita com tecidos artificiais e sua estatura, calor, peso e consistência da pele era idêntica a qualquer outro humano. As simulações de sentimentos desse modelo era tamanha que alguns substituíam professores em universidades.
E foi justamente por ser professor de filosofia na UNB que Sato conseguiu escapar do desmanche. Um dos seus melhores alunos e tatuador, o escondera em sua casa por anos mesmo com risco de ser preso, mas a morte desse grande amigo forçou-o a ir a um lugar onde ninguém suspeitaria, pois ninguém se importa, seja instituição privada ou pública: no meio de mendigos de rua. Passaram-se quase vinte anos desde que foi morar na Rodoviária e seu objetivo de seguir em frente somente existe para um dia tentar entender tudo o que ele passou, entender como o ser humano funciona... e também alimentar e manter seu cão companheiro.
Como uma máquina evoluída por décadas até sua perfeição, em um conflito armado violento contra humanos como a Guerra da Conquista, pôde perder?
Sato, como o melhor professor de filosofia e sua simulação atualizada até ao máximo daquela época, frequentemente acorda em suas manhãs frias com este pensamento. Ele não compreendia como a imperfeição humana ao ser somado, agrupado e coordenado, beira a um ser perfeito. No fundo, Sato tinha uma total admiração pelos humanos e uma agonia muito grande de não poder mais conversar abertamente sobre esses assuntos. Ora, como ele iria obter e processar as respostas se não havia perguntas sendo feitas?
O pastor alemão mexeu-se, saiu por debaixo do trapo de lã velho, bocejou e se espreguiçou, mas logo voltou por cima do trapo no colo e deitou olhando para as pessoas passando. A visão do velho mendigo de cabelos castanhos grandes bagunçados e barba mal feita, junto com seu fiel cão ao colo, fizeram duas pessoas jogarem moedas em direção ao chapéu, uma certeira, mas outra resvalou na aba e quicou para alguns metros. Sato tocou o cão com todo cuidado de seu colo, ajoelhou, pegou a moeda e juntou com a outra no chapéu, contando cinquenta centavos. Voltou a sentar e quase instantaneamente o cão deitou em seu colo fitando as pessoas passando.
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Limitações Pelas Vias da Interioridade
Science FictionHavia um post no Facebook onde combinando o seu nome, o mes de aniversario e o numero da sua residencia, daria o nome de um conto filosofico. Pegando essa brincadeira, o meu de "Limitações Pelas Vias da Interioridade". Como desafio literário, eu rea...