Único

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Após uma puxada série de exercícios saio mancando estúdio graças aos meus músculos que ainda ardem.
Algumas garotas riem, outras já tiram as sapatilhas de meia ponta, todas cansadas, porém felizes. Me inclino sobre o bebedor para que um pouco de água alivie minha sede, logo minha garganta não está mais seca. Mal posso esperar para chegar em casa e poder tomar um banho, o suor  em minhas costas desnudas me incomoda, mas esse é um pequeno sacrifício a se pagar pela aula de balé que tanto gosto. Durante essa uma hora e meia mal me lembro do que me atormenta.
 Do que me persegue.
 Sigo pelo corredor de concreto a caminho do vestiário depois de anunciar que pegaria minha bolsa rapidinho. Mas as luzes se apagam.
 Estranhamente, não ouço mais nenhum ruído. Nenhuma risada ou sons de conversa, ou colchonetes sendo arrastados. Engulo em seco girando nos meus calcanhares. Está muito escuro. Não consigo enxergar o caminho que acabara de percorrer.
 Não é possível, mas pelo visto todos foram embora. É a única explicação que meu cérebro consegue assimilar.
 Um vento gelado vem de cima e sobra os fios de cabelos soltos do meu coque. Meu corpo, antes fervendo pelo calor, muda de temperatura drasticamente. Sinto um arrepio subir por minhas pernas, barriga e ombros. Ele se aloja em minha garganta e permanece lá. O ardor nos olhos assinala que o medo já está tomando conta.  Cerro os dentes e balanço a cabeça com firmeza. Que besteira.
 O suor proveniente dos exercícios estranhamente desce por minhas costas. Porém agora, gelado.
 Está tão escuro, mas o corredor é tão pequeno. O fato de eu não conseguir encher muito mais que alguns centímetro a minha frente me incomoda. Não faço ideia de estar demorando tanto para alcançar o vestiário. Talvez-
 Mas minhas divagações são interrompidas.
 A música volta a tocar em um rompante. Um piano estridente, os sons de um violino que parecem rasgar os ouvidos. Minha primeira reação é as mãos até a cabeça, para aliviar os ruídos que invadem meus tímpanos.
 O professor não poderia ter ligado o som, julgando que não está mais aqui, como todo o resto. Porém, ouço passos no tablado de madeira macia que reveste o chão do outro lado do corredor.
 A ideia de uma sombra dançando no escuro me assombra.
 Decido não voltar para checar. Pouco me importa quem está lá, saltando e produzindo baques nada profissionais.
 Lentamente, deixo meus braços penderem. Estou sonhando?
 Não pode ser.
 Mas para ser sincera, não tenho como provar para mim mesmo que não estou.
 Avisto o vão de sombras que é a porta do vestiário. Minha urgência é tanta que apoio minha  mão esquerda na parede de pedra áspera com demasiada força, a pele rasga sob meu toque. Não poderia me importar menos.
 Encaro os bancos, atordoada. Todas as bolsas estão ali, não apenas a minha.
 Mas onde estariam as outras meninas? Por que não consigo ouvir suas vozes?
 Respiro fundo reunindo coragem para perscrutar o corredor.
 Está escuro como o breu, como se coberto por tinta acrílica negra.
 E o silêncio.
 Os passos frenéticos cessaram. Agora apenas uma leve sinfonia ressoa, baixa, sinistra. Consigo a reconhecer, por tê-la ouvido tanta vezes durante os exercícios. Mas tinha algo errado, e esse algo era o fato de ela estar sendo reproduzida -
ao contrário.
 Cambaleio em direção as minhas coisas me deixando desmoronar no banco.
 A música deveria ser bonita quando reproduzida normalmente, mas daquela forma, era simplesmente medonho.
 O frio já estava fazendo com que meus dentes começassem a bater. Meu corpo não poderia ter esfriado assim tão rápido, não faz sentido.
  A verdade que ainda não estou pronta para admitir, é que nada está fazendo.
 Abro minha bolsa para enfiar minhas sapatilhas o mais rápido possível. Quero sair daqui e avisar a alguém que o som está ligado, apenas isso. Ninguém gostaria de ficar gastando energia a toa, não é mesmo?
 É quando minhas narinas são invadidas por um odor pungente, nauseante, e muito, muito familiar
 Ah, não. 
 Não.
 Só posso estar sonhando.
 O fedor de peixe flutua para fora do banheiro feminino, o mal cheiro invadindo minhas narinas.
 Sei que ele deve estar aqui.
 Meu estômago se revira ameaçando jogar tudo para fora.
 Tenho que conferir. E provar para mim mesma que não é outro pesadelo, que não é nada.
 E que a culpada por meu enjoo é a fome.
 Finjo que minhas pernas não estão bambas pelo esforço físico e em maior parte, pelo medo.
 Com lágrimas aterrorizadas rasgando minha garganta, me aproximo e chuto porta.
 Lá dentro, um buraco de escuridão .
 Tão negro, tão indescritivelmente apavorante.
 Recuo.
 Só para descobrir que é tarde.
 A mão longa e escamosa  já tinha me alcançado. Suas garras gélidas fechadas contra meu tornozelo.
 Não ouso olhar para baixo
 Mas sinto perfeitamente a viscosidade da pele leitosa sob seu toque, apesar da meia calça. 
 Lentamente, no meu momento de paralisia, uma sombra negativa se ergue com seu fedor sobre mim.
 Digo sombra negativa por a criatura ostentar um tom branco doentio no meio de toda aquela negritude. Seus olhos fundos e com pálpebras transparentes, como as de um peixe.
 Mas nenhum peixe sorri assim.
 
  Sinto minha bexiga prestes a se soltar. Mas quem me solta é a coisa
 Recuo minha perna de supetão e perco o equilíbrio. O cimento áspero me recebe com suas lascas pontiagudas. Meu joelho sangra agora, assim como minha mão. Noto as guelras da criatura se dilatando perante ao cheiro de sangue. Seus olhos ficam alucinados. De sua boca rasgada uma espécie de baba amarelada escorre.
 Ouço, ao engatinhar freneticamente para trás, ainda sentada sobre minha bunda o chiado terrível que saí de sua garganta rasgada.
 Aquela pele arroxeada em volta do ferimento monstruoso.
 Ovos eclodem.
 Subindo por sua garganta e encontrando a liberdade na fenda aparentemente infeccionada.
 Tripas e pequenos peixes são regurgitados. O ruído molhado das substâncias indo de encontro ao chão é nauseante
 A música para.
 Tenho que sair daqui. Rápido. 
 Volto a me apoiar no batente da parta. E tendo ânsias tropeço para o corredor. 
 Não paro para pensar se está escuro demais, ou o que poderia estar me esperando do outro lado. Apenas corro.
 E alguns passos depois sou detida por uma massa sólida. Meu interior explode em pânico antes que eu perceba do que se trata. 
 Minha amiga pisca para mim em seu collant preto, o coque ainda firme no topo na cabeça.
 - Ei, você está bem? - ela me olha preocupada.
 Relanceio por cima dos seus ombros e a claridade das luzes me cega. Estão todas acesas.
 O que antes era um umbral de escuridão, agora voltou a ser apenas um estúdio de balé. 
 Todas as alunas ainda estão ali, conversado e bebendo água de suas garrafinhas. O professor se encontra sentando em uma rodinha com alunas mais velhas no centro da sala.
  A próxima aula já vai começar. 
 Trêmula, não ouso olhar para trás.
 
Esse pesadelos 

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⏰ Última atualização: Aug 23, 2018 ⏰

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