CORTES

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Estou aqui. Deitada nesse chão frio do banheiro de casa. Olho para o teto e o que consigo ainda ver vagamente é o formato do lustre apagado. Não consigo mexer mais os meus braços. Dessa vez, acho que foi profundo demais. Minha cabeça está doendo e me sinto fraca, enjoada e tonta. Um, dois, dez, vinte cortes que sangram e não param. Alguns deles nos pulsos.

Quanto tempo estou aqui? Não sei mais. Perdi a noção do tempo. Mas tudo bem. O tempo nunca foi mesmo a coisa mais importante. Os dias tornaram-se intermináveis e nada faz sentido. Quando foi que comecei com tudo isso mesmo? Não consigo me lembrar. Porém, os motivos sim: eu sei todos. Mesmo que tente esquecê-los, eles estão penetrados profundamente em minha mente e não importa o quanto eu lute para que eles saiam eles persistem. Ficaram instalados dentro de mim em uma obsessão que não termina nunca. Um looping interminável. Não consigo detê-los. Não estou pronta para fazê-los parar. Então me entrego a eles. Foram tantas transições, tantos momentos que não consegui compreender direito. Mudanças e mais mudanças em casa, na escola, em meu corpo, os meus amigos já não são mais meus amigos. Isolei minha vida de todos.

A dor emocional começou pequena, mas foi crescendo, e quando me dei conta estava gigantesca e eu não conseguia lidar com ela. Fiz o primeiro corte. Queria fazer a dor vazar por algum lugar. Senti um alívio por alguns segundos. Mas a dor não vazou. Ela cresceu. Mudou de forma. Agora é também física.

Conheci pessoas que faziam o mesmo e me juntei a elas. Convenci tantas outras a se cortarem também. Sem a menor culpa em trazer pessoas para o meu lado, inventei jogos de vida e morte, contei historias, falei de suicídio e até as incentivei a praticá-lo. Cada um decide por si. Algumas continuam a se cortar, outras pararam, uma morreu e me senti culpada.

Cada vez fui me mutilando mais e mais. Corte, sangue, dor e tudo se repetindo de novo e de novo. Braços, barriga, pernas e coxas. Blusões quentes em dias escaldantes e fugas de perguntas que não paravam de me fazer. Hoje cortei, cortei sem parar. Queria terminar de verdade com essa dor que não passa nunca.

Algo está diferente dessa vez. Deitada aqui nesse chão de banheiro olhando para o teto, não consigo mais me mexer. Será que estou morrendo? Algo estranho está acontecendo. Sinto frio e dor. Não consigo gritar e nem fazer nada. O que está acontecendo dessa vez? Perdi o controle? Eu não quero morrer! Mesmo parecendo que sim eu não quero!

Tentaram me ajudar. Notaram quando as marcas começaram a aparecer. Sei que tive pessoas esforçadas tentando fazer algo por mim. Mas eu afastei todas elas. Como fui burra de não ter aceitado ajuda. Parecia que ninguém iria conseguir compreender as minhas dores, meus medos, minhas inseguranças e o que eu queria dizer. Achei que me julgariam, que não dariam importância e que simplesmente não iriam compreender.

Agora deitada nesse chão, sentindo o sangue escorrendo de dentro de mim, acho que poderia ter falado com alguém, ter aceitado ajuda. Já não consigo mais sentir meu corpo. Tudo está frio demais. Minha respiração está cada vez mais lenta. Eu não quero morrer. Mas dessa vez fui longe demais sem perceber. Cenas da minha vida estão passando rapidamente em minha mente. O que está acontecendo? Vejo vultos escuros se aproximando. Eles riem. Eles xingam. Eles dizem suicida! Eu não consigo gritar. Eles vêm em minha direção. Eles me chutam. Eles apertam o meu corpo. Eu não consigo fazer nada... nada.... acho que acabou... eu não queria morrer. Eu só queria que a dor parasse. Mas ela não parou.

CUTTING - Um conto de Marina CerviniOnde histórias criam vida. Descubra agora