Cena III

124 20 12
                                    

Dois dias com a fita do filme em nossa mão e só agora a assistíamos, concentrados, com os olhos vidrados na tela. Era o último dia de aula antes das férias, uma ocasião perfeita para gazetar e aproveitar a casa vazia de Paio para assistirmos nosso primeiro terror. O pai de Paio trabalhava em tempo integral numa cidade vizinha, já sua mãe havia ido à capital fazer uma consulta de rotina no ginecologista. Ou seja, casa vazia, oficina dos garotos desobedientes.

A musiquinha que umas garotas de vestido branco cantavam, enquanto pulavam corda, resumia bem o clima sinistro do filme. A hora do pesadelo girava em torno de um grupo de adolescentes que sofria com uns pesadelos bizarros e inexplicáveis. Em seus sonhos aparecia um homem deformado, vestindo um suéter listrado e desgastado e com garras de aço nas mãos. Era Freddy Krueger, um psicopata que, no passado, havia molestado e assassinado criancinhas na Rua Elm, na cidade de Springwood, Estados Unidos. Freddy havia sido queimado vivo pela vizinhança enfurecida e, devido ao seu ódio e enorme sede de vingança, acabou por se transformar em um demônio dos sonhos, causando a morte dos adolescentes através de seus pesadelos.

Uma pena que a imagem exibida na tela não contribuía muito para a nossa diversão, já que o videocassete de Paio era um Panasonic importado e pesadão. Pelo aparelho não ser configurado com os padrões nacionais, a imagem que passava para a tevê ficava meio esverdeada e as cores em uns tons meio estranhos.

— Égua, cara, não chateia! — Paio me repreendeu quando reclamei do esverdeado na tela. — Importar o videocassete saiu muito mais barato do que comprar um na loja, e dá pra assistir não dá? Pô, tô me arrepiando todo aqui assistindo isso. — Ele mostrou os pelinhos do braço eriçados. — Não corta o clima, mané. Não corta.

— Acho que o Freddy dá mais medo com essa imagem verde bizarra do que em uma colorida. Parece até mais real, sei lá — concluiu Bento, sem desgrudar os olhos da tela.

Apenas dei um sinal de desdém com os ombros e continuamos assistindo em silêncio. Não demorou muito para que nossos corpos voltassem a se retesar involuntariamente, e assim ficamos atentos a tudo ao nosso redor. De início, a casa vazia passava uma sensação de segurança, já que ninguém iria atrapalhar nossos planos e condenar o filme à fogueira. Contudo, talvez haja, realmente, algo de sobrenatural em filmes de terror, pois bastou assistirmos A hora do pesadelo e nossos sentidos se aguçaram de tal forma que conseguimos ouvir e perceber certas coisas estranhas. Paio, por exemplo, jurava que alguém havia tocado em seu ombro; Bento afirmou ter visto uma sombra passar rápido pelo vão da porta da cozinha; e eu ouvi alguém sussurrando meu nome perto da orelha esquerda, num bafo gélido.

Enquanto isso, Freddy Krueger atacava um, esfolava outro, agitava suas garras de metal pelo ar e ria, porque o poder era todo seu. Apenas nos revolvíamos no sofá, mordiscando os lábios, roendo as unhas e retesando o músculo das nádegas. Para mantermos o clima de mistério, mantivemos a casa fechada para evitar bisbilhoteiros nas janelas, pois o terreno não era murado. Uma péssima ou má ideia dependendo do ponto de vista ou da situação. Então, de repente ouvimos sons de passos rodeando a casa pelo lado de fora e permanecemos que nem babacas, silentes, olhando sem ação para as portas e janelas fechadas. Ainda bem que nossas casas são diferentes das casas norte-americanas, onde os assassinos em série quebram as portas com um só murro. É, havia sido uma boa ideia fechar a casa.

A trilha sonora do filme entoou uma melodia melancólica e a cena cortou para mostrar um dos personagens dormindo. Vozes infantis começaram a cantarolar em coro...

Senhor dos Sonhos | WATTYS 2019Onde histórias criam vida. Descubra agora