Cena VIII - Post Script

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São Paulo, SP. Agosto de 2009.

Não posso afirmar, com convicção, que o fato vivenciado por mim e meus amigos, naquele ano de 1987, foi real. Alexandre Paio e José Benedito, o Bento, sempre mantiveram suas lembranças seladas em algum recanto secreto de suas mentes. E creio que eu também acabei por fazer o mesmo.

Após concluir os estudos básicos em minha cidade natal, minha família mudou-se para Belém, no intuito de que eu ingressasse na faculdade; devido a isso, terminei me distanciando bastante dos dois e raramente conseguia encontrar-me com eles. Ainda guardava esperança de um dia marcamos um encontro entre nós três, para tomar umas biritas e relembrar os velhos tempos, coisa que nunca aconteceu por falta de tempo. Ou por falta de vontade.

Paio seguiu carreira militar assim como seu irmão, e porventura se tornou o orgulho da família quando subiu de patente. Mantivemos contato por um ano ou dois até que o curso da vida, enfim, nos separou.

Bento resolveu seus "problemas" pessoais com o Turco. O pesadelo daquele verão de 87 o permitiu enfrentar seus próprios medos e lhe deu coragem para buscar ajuda, primeiro junto à sua mãe, em seguida, às autoridades competentes. Mas não vou entrar em detalhes quanto a isso. Casou-se com uma moça de nossa terra natal, logo após terminar o antigo Segundo Grau. Permaneceu em Soure e seguiu carreira no magistério, ocupação que acabou por se tornar sua paixão. Também mantivemos contato por alguns anos através de cartas e e-mails, quando estes se tornaram febre mundial, mas os laços de amizade sempre se fragilizam após longas separações.

Seguindo carreira de redator, mudei-me para São Paulo, local onde resido há dez anos. Hoje, por coincidência, acabei encontrando um velho caderno espiral onde anotei algumas informações pessoais e o login de uma antiga conta de e-mail. Seguindo as instruções, consegui executar o processo de recuperação da conta e das mensagens perdidas. Foi assim que recebi as más notícias. Através daquele meu esquecido correio eletrônico descobri que meus dois amigos de infância haviam partido deste mundo.

Paio morreu no início deste ano, acometido de uma parada cardíaca fulminante enquanto dormia. Bento se foi há apenas dois meses, coisa recente, o que me deixou muito chocado. A esposa de Bento foi a mensageira da morte, aquela que me enviara o e-mail com as más notícias. Informou-me que Bento havia sido diagnosticado com transtorno pós-traumático, devido a certas lembranças do passado que ela desconhecia. Escreveu-me assim:

"Foi tudo tão rápido. Bento às vezes não falava coisa com coisa. Dizia ter medo de adormecer e nunca mais acordar, por isso sofria constantemente de insônia. O médico receitou uma nova droga com poderoso efeito calmante, remédio que o poria para dormir fácil fácil. Funcionou bem durante alguns dias, até que as crises psicóticas e os pesadelos retornaram ainda mais intensos e frequentes. Acordava gritando, exibindo hematomas e arranhões pelo corpo. Recusou-se novamente a dormir. Eu não sabia mais o que fazer para ajudá-lo! Então, um dia ele se lembrou de ti e de Alexandre, a quem ele chamava apenas por "Paio". Disse-me que precisava entrar em contato urgente com um de vocês dois. Só consegui contatar Alexandre, de ti nunca obtive resposta. Alexandre ainda veio encontrar-se com Bento, mas, após a rápida visita, ele saiu daqui muito perturbado, não sei o que conversaram. Dois dias depois, Alexandre Paio morreu dormindo. Meu marido piorou drasticamente depois disso, definhando mês após mês, até que um dia ele decidiu dormir por livre e espontânea vontade. Dormiu e não acordou mais."

Quase caí da cadeira ao ler o relato da esposa de Bento. Podia sentir minha garganta seca e meu pomo de adão com dificuldade para subir e descer. Ao final do e-mail, a esposa do finado escreveu-me, talvez, a coisa mais perturbadora que eu poderia ter lido em toda a minha vida:

"Bento deixou um bilhete endereçado a ti. Encontrei o papel em cima do criado-mudo de nosso quarto, o quarto onde ele faleceu. Dizia assim: Ele voltou e é real. Creio que tu devas saber o que isso significa, pois eu não sei."

Remexi-me na cadeira sem saber o que exatamente pensar sobre aquilo. Foi impossível não relembrar o passado, o fatídico ano de 1987. Tentei manter-me calmo. Afinal, coincidências existem e acontecem todos os dias. Respire fundo. Respire fundo, disse a mim mesmo. Os dois apenas tiveram mortes bizarras associadas ao sono. Sono e pesadelos profundos e misteriosos. Nenhum Freddy. Sim, nenhum. Ele não voltou, nem é real.

Desliguei o computador de mesa. Era meia-noite. Eu devia ter lido os e-mails somente na manhã do dia seguinte, grande besteira eu fiz lendo as mensagens tão tarde assim. O apartamento agora parecia grande demais para um cara solteiro como eu. Arrependi-me de não ter adotado um gato.

Preparei-me para dormir. Acertei a hora do despertador e me enfiei debaixo dos lençóis. Agora eu tinha um teto forrado sobre mim, forro de gesso, branco e liso. Mas não queria olhar para ele, então me cobri da cabeça aos pés, como costumava fazer quando criança, quando tinha medo. Fechei os olhos e afiei os ouvidos. Ouvi sirenes de polícia. Cachorros latindo. Um som distante de buzina. Brisa soprando pelas frestas da janela. Torneira da pia pingando. Tic e tac do relógio. Um suspiro forte no outro canto do quarto...

Um suspiro forte no outro canto do quarto...

Um suspiro forte...

Meu corpo sobressaltou-se num espasmo debaixo da coberta. Estou sonhando? Não, estou desperto, posso sentir. Estremeci, não queria olhar. Os monstros podem nos pegar se sairmos de debaixo dos lençóis, e eu não ia pagar para ver.

De repente, alguém cantou...

Um, dois, Freddy vem te pegar.

Três, quatro, feche bem o quarto.

Meu motor cardíaco acelerou. Era a música... a música do Freddy...

Cinco, seis, segure a sua cruz.

Vozes. Malditas vozes de menininhas em coro...

Sete, oito, fique acordado.

Nove, dez, não durma nenhuma vez...

A música parou e todo o quarto imergiu em um silêncio sepulcral. De súbito, meu lençol foi arrancado de sobre mim e um Bento cadavérico pulou sobre a cama, prensando-me o peito.

— Por que não trancou o quarto? — ele gritou com violência sobre mim. — Um, dois... Um, dois... — ele cantarolou e seus olhos se encovaram sob a face, formando auréolas negras.

Berrei em desespero e comecei a rezar. O rosto de Bento se metamorfoseou em uma massa rosada de carne, até dar os primeiros sinais de uma nova face, a face de Freddy Krueger.

A cama toda vibrou transformando-se em uma massa pegajosa, inúmeros tentáculos brancos saíram de dentro dela e me agarraram, elevando-me quase até ao teto. No centro do colchão se abriu uma grande bocarra metálica cheia de dentes trituradores. As gargalhadas onipresentes de Freddy ainda ecoavam por todo o quarto quando os tentáculos infernais, finalmente, lançaram-me para dentro do triturador infernal.

Feche bem o seu quarto, segure a sua cruz e não durma nenhuma vez.

Feche bem o seu quarto, segure a sua cruz e não durma nenhuma vez

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⏰ Última atualização: Sep 20, 2018 ⏰

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