O ar me era estranho. Parecida mais pesado, mais denso. Era difícil de respirar. Grosso, porém eu continuava a puxá-lo pelas narinas, mesmo com dificuldade. Isso, em troca, causava a minha respiração a se tornar descompassada. Ficaria cansada a qualquer momento, porém esse momento parecia nunca chegar. Isso continuava. A dificuldade para respirar somada com a nunca chegada do cansaço real. Eram dois conceitos que não deveriam existir em conjunto mas naquele momento, existiam. Assim como o chão abaixo de mim, que parecia tão líquido e mesmo assim eu conseguia pisar nele sem afundar, sem deslizar. Minha percepção das coisas estava alterada. Não somente alterada, eu conseguia conceber dois conceitos diferentes em um mesmo lugar, ao mesmo tempo. Eu estaria bêbada? Não, eu consigo pensar, consigo me mover precisamente. Então o que?
O questionamento perdurou pela minha cabeça enquanto eu caminhava por aquele túnel escuro que a cada passo parecia diminuir enquanto se expandia simultaneamente. A luz no fundo era escura, incomodava meus olhos aos pontos de as vezes ter que tampar o rosto e conforme eu andava, conforme aquele buraco no final se tornava menor e menor, meus passos se tornavam mais e mais velozes até que eu estava correndo em direção ao fim. Só mais uns centímetros. Estou tão perto. Não posso parar. O chão se tornava cada vez mais maleável, com mais e mais aparência líquida, mas ainda assim eu continuava a correr e correr, até que uma silhueta branca aparecia em frente a mim.
Laura. — Ela disse.
Oi.
Laura? — Ela repetiu.
Oi!
Laura!? — Agora mais assustada. Ela não consegue me ver? Eu estou aqui. Eu estou aqui!
Laura!Borboletas nem sempre foram borboletas. Elas, antes de abrirem suas lindas e coloridas asas e viverem por alguns meses, eram larvas. E depois de larvas, elas se envolviam em um tipo de casulo para então dar origem a beleza que elas tanto demonstram ao voar e bater suas asas. Pois bem. Os meus olhos se abriram como uma borboleta tentando quebrar de sua pupa. Tudo estava confuso e embaçado. A sensação que eu tinha é de que havia acabado de nascer. A consciência havia me agraciado com sua presença pela primeira vez agora e tudo ao meu redor me era estranho e novo. Eu tive que piscar os olhos algumas vezes, impulsivamente, tentando limpar o meu campo de visão e tomar foco de algumas coisas. Onde eu estava? O que é isso abaixo de mim? O que é isso em cima de mim? Aos poucos eu fui reconhecendo, pedaço por pedaço da minha própria cama e do meu próprio ser. Meus braços podiam se mover e eu tinha braços. Dois. Eu podia bocejar, abrindo bem os lábios e foi isso que eu fiz. Depois foi a vez de uma dor começar a invadir meu corpo. Havia dormido em uma posição errada e agora eu já tinha recuperado conceitos o suficiente para poder formar essa frase em minha cabeça. A minha consciência enfim havia voltado com completa força, eu estava ciente de quem eu era e de onde eu estava e de que definitivamente eu dormi de mal jeito pois todo o meu corpo se irritava com a dor que sentia.
Laura! —Minha mãe gritou, pela quarta vez.
Oi! — Eu respondi, fingindo que estava acordada esse tempo todo e que havia ouvido cada uma das vezes que ela havia chamado. O que não era mentira.
Você tem aula. Acorde logo.
Eu já tô indo. — E suspirei.
Todo aquele momento de autoconsciência havia durado menos que um segundo. Eu não tinha nem tempo de contemplar a minha própria existência que já era obrigada a me levantar para ir para o colégio. Talvez fosse melhor assim, pois eu poderia acabar chegando a conclusão de que eu era uma borboleta. Talvez eu realmente fosse.
Um piscar de olhos e eu estava no assento de trás do carro, com a testa encostada no vidro, batendo contra ele. Não sabia explicar, mas aquelas micro agressões eram quase terapêuticas. Uma maneira de me fazer cochilar em poucos segundos. Havia já me acostumado com as ruas cheias de buracos e quebra-molas que poderiam realmente quebrar algo do carro mesmo se passasse por cima deles em uma velocidade menor que a de uma tartaruga. O meu cabelo servia como uma barreira protetora para que cabeça não batesse diretamente contra o vidro duro, era quase como uma massagem. Uma massagem dolorosa, mas tranquilizante. E no meio de um cochilo e o outro, no meu processo de auto-descoberta constante, de perda de consciência e a recuperação dela, o carro parou.
Meus olhos estavam um pouco vermelhos. Na esclera, os vasos sanguíneos tomavam conta da imensidão branca ao redor da íris. Raios vermelhos, raízes sangrentas, irritação constante e algumas lágrimas escorrendo depois de coçar. O sono não havia sido bondoso comigo na noite anterior. Me lembrei do sonho assim que meu pé tocou o chão em minha frente, ao sair do carro. Não era líquido, mas bastante duro. No entanto, era tão estranho para mim quanto o piso dos sonhos. Tudo lá era estranho. Em minha frente, um grande portão de metal que reluzia os raios solares e acabavam alcançando o meu rosto, fazendo com que minhas mãos se levantassem, bloqueando a luz para que eu pudesse caminhar em direção do mesmo. Foi a caminhada mais longa que eu tive. Meu coração parecia bater a um ritmo surreal. A cada passo que eu dava, atrás de mim eu deixava um mundo familiar. Aquele carro, a minha mãe, a minha casa. Mesmo assim eu continuava até passar pelo portão.
O primeiro dia de aula é sempre o mais temido para aqueles sem muita disposição social. Uma turma nova, uma escola nova, pessoas novas, mas amizades antigas. Todo mundo já está estratificado. Cada grupinhos definido e, quando aparece um membro novo, se decide onde ele vai ficar. Agora era minha vez de passar por esse teste. Em pleno segundo ano, mas poderia ser pior. Seria mais difícil penetrar os grupos do terceiro ano, afinal, muitas pessoas começam e terminam o ensino médio na mesma instituição. O processo seletivo de grupos acontece de maneira natural e eu eventualmente estaria em algum deles desde que eu não me isolasse completamente e não tentasse interagir com ninguém. Era tudo uma questão de gostos, na verdade.
As primeiras aulas passaram lentamente. O relógio, pendurado na parede, parecia andar ao contrário. Garanto que em algum momento eu vi o ponteiro retornando mas logo depois se movendo duas vezes para frente, para disfarçar ter sido descoberto. Ninguém precisou se apresentar. Só haviam duas pessoas novatas e uma delas era eu, então era negligenciável essa questão, além de que os professores não queriam nos deixar sem graça em frente a nova turma. O primeiro, segundo e terceiro tempo se passaram e nada fiz além de tentar prestar atenção nas aulas e mexer em meu celular. Algumas mensagens de antigas colegas de classe reclamando de que sentiam minha falta. E um riso em resposta a elas.
Foi no intervalo que algo realmente aconteceu. Eu estava em pé, em frente a fila para comprar uma ficha de um salgado, quando aconteceu. É preciso, por causa da quantidade de alunos naquele colégio, ter algum controle com a comida que vendem na lanchonete. Por isso, a cantina vendia uma fichas. Uma dizia "salgado", a outra dizia "refrigerante" e tudo era padronizado, tudo tinha o mesmo preço para facilitar. O preço era alto, mas quem frequentava aquele colégio claramente tinha o direito para pagar os centavos e reais a mais. Era o rico explorando o rico porque eles podem se pagar. Para nós, alunos e adolescentes, não pensavamos muito nisso. Só pagavamos e comiamos. O dinheiro existia, então não havia com o que pensar. Foi pensando nisso, na verdade, que eu vi uma menina passando por mim. Uma menina seria pouco para definir o que ela era. Quase como numa cena de um filme, eu podia assistí-la passeando em câmera lenta. O seu cabelo era loiro ao ponto de quase ser branco, deslizando pela sua pele, no ombro, que contrastava com a tonalidade dos fios. A pele, por outro lado, representava um bronze tão uniforme, sem nenhuma falha. Era a cor que provavelmente muitas pessoas sonhavam ter quando iam para a praia, mas ela conseguia tê-la naturalmente. O corpo era pequeno e magro, mas andava com uma propriedade que eu nunca havia visto antes, como se ela fosse dona de cada um de seus passos. Como se tudo ao seu redor pertencesse a ela e apenas a ela. Não sei se ela causava aquele efeito apenas em mim, mas eu não consegui tirar os olhos dela enquanto ela passeava pela praça do colégio. Ela nem ao menos me olhou ou percebeu que eu existia, o que era normal, eu era apenas outra garota na fila, mas durante o dia todo, ela foi a única garota que eu realmente consegui ver.
Eu vi muitas pessoas durante o dia, mas aquela menina, a menina dos cabelos quase-brancos, ela foi a única que permaneceu em minha memória quando o sinal enfim tocou para que saíssemos da aula. Eu não passei o dia todo pensando nela. Assim que ela foi embora, eu voltei a me distrair, porém, no fundo da minha cabeça, agora eu tinha um ponto de referência. Talvez, se amanhã eu comprasse o salgado na mesma hora, eu a veria de novo andando na mesma direção e falando com as mesmas pessoas. E poderia repetir isso por alguns dias, para ter uma rotina. Algo seguro no meio desse mar de insegurança.
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Laura.
FanfictionNo auge de seus dezesseis anos, Laura se vê presa em um relacionamento com uma das meninas mais populares de seu colégio. O que aparentava ser uma relação saudável e amorosa entre as duas acaba se tornando algo que ela não esperava, até que uma nova...