Uma criança persegue um gato no meio da rua. Uma mulher está fingindo lavar roupa, enquanto fica observando o que o casal de vizinhos está fazendo no quarto, através da janela entreaberta. Enquanto isso, na frente da casa um velho com um grande saco nas costas, caminha seguido de perto por 3 cachorros. E 2 meninos jogando bola, parando sempre que um carro passa.
E nós observávamos todos eles com os nossos binóculos.
Quando eu falo em "nós" nesse momento, eu estou falando de Julia e eu. Ou eu e Julia. Eu não tenho certeza qual a forma correta que escreve isso.
E nós estamos observando todos eles do alto de uma caixa d'água que tem uma visão privilegiada de toda a cidade. É aqui que "nós" passamos a maior parte do tempo, quando estamos de férias ou quando estamos entediados. A nossa cidade é muito pequena e não tem muita coisa pra fazer, além de ver televisão ou ficar o tempo todo no twitter.
Aqui nós podemos ficar ouvindo música espiando a vida dos outros. Esse é o nosso passatempo preferido.
Tudo começou muitos anos atrás, quando uma nova caixa d'água foi criada pra abastecer a cidade, substituindo essa velha caixa d'água, em que nós estamos. Na verdade ninguém sabe ao certo porque precisaram construir uma nova, quando era consenso que a antiga funcionava muito bem. Mas tinha chegado ano de eleição e o prefeito precisava de alguma obra pra mostrar pros eleitores insatisfeitos e uma ponte onde não corre rio não chama muitos votos.
Desde então ficou abandonada e ignorada pela maioria das pessoas da cidade. Eu e Julia (ou Julia e eu) descobrimos que esse podia ser um lugar legal de ficar nos nossos momentos de tédio, num dia em que nós subimos aqui pra fugir de uma aula chata da escola. Não podíamos voltar pra casa porque haveria problema. Desde então é o "nosso lugar".
Apesar de sempre receber ótimas notas, eu odiava a escola e queria sair logo desse lugar. Eu não me sentia compreendido pela maioria dos meus colegas, principalmente os meninos. Eu não me sentia fazendo parte do universo deles, eu não gostava de futebol, nem da maioria dos esportes.
Julia era um ano mais velha que eu, a gente se conheceu num dia que ela me livrou de uns garotos mais velhos que queriam me bater por algum motivo que eu não lembro. Eu sempre sou alvo desse tipo de coisa. Eu já a conhecia porque ela era a garota que tinha vindo da cidade grande pra morar em lugar nenhum e foi uma grande atração, todo mundo só falava nisso durante algum tempo. E eu me senti muito surpreso quando a gente começou a sair junto. Eu acabei virando o centro das atenções durante 15 minutos por causa dela.
Eu não tinha certeza a respeito do trabalho do pai dela, apesar de sempre estar junto dela, Julia não gostou muito da gente ir pra casa dela. Na verdade eu acho que só fui umas duas vezes pra lá, e nunca vi o seu pai. Mas sabia que ele precisava viajar muito por causa do trabalho e muitas vezes a família precisava viajar junto.
É por isso que essa é a última vez em que nos subimos na caixa d'água pela última vez.
Esse "nós" logo vai virar só "eu".
Depois de alguns anos na nossa cidade, Julia e os pais dela iam mudar novamente de cidade e eu ia voltar a ficar sozinho. Ouvindo spotify, observando a vida acontecer lá embaixo. Sem participar ativamente. Eu gostava disso. Eu me sentia bem sendo apenas um observador. Um voyeur.
Era uma manhã ensolarada de sábado e era a última vez em que nós estivemos na velha caixa d'água, nós quase não falamos nada. O que era muito pouco habitual. Ficamos ouvindo os barulhos da cidade, e eles pareciam ensurdecedores. No fim só trocamos um abraço e uma sensação de impotência tomou conta de mim.
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Voyeur (ou O Corpo)
Mystery / ThrillerNuma pequena cidade, um adolescente sem amigos, passa seu tempo observando a vida de seus vizinhos. Até que numa noite de insônia, ele testemunha um crime e isso pode mudar a sua vida. *** Se vocês gostarem, me avisem que eu publico os próximos cap...