Estacas d'Gelo (conto, fantasia)

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Cânticos surdos habitavam a mente, ressoavam a sinfonia de notas impossíveis. Música celeste tecida do abismo, reinando o ermo de brumas, enlaçando-se gélida e punitiva.

— Palavras são insuficientes. Desejos não bastam. Nem lamúrias...

Asas rajadas emolduravam a silhueta d'ela. Joelhos caídos sobre as pedras ocultas sob a névoa, ombros tombados e face maculada do orvalho salobre.

Aura desvanecia. Harmonia de paz dava lugar ao vazio de incertezas.

O caos ansiava-lhe

— Lamúrias. Arautos de vossa condenação.

Não se assustou, nem lhe encarou. Cegou-se às verdades esfaceladas, ignorando-o.

— Sonhei como cada um deles. Alcei-me ao trilhar dos Céus. Promessas de nada adiantaram...

Tais garras de autoflagelação, o punho trabalhava indiferente à dor, arrancando de si mesma pena por pena. Penugem alva era tingida pelo escarlate em manchas profanas.

— A Luz traiu-te, doce cria — ele proferiu o óbvio que clamava ser explicitado. A ingenuidade da celestial lhe impedia de formular tal constatação.

— Vivi igual a eles. Exatamente como eles queriam — um breve sorriso de desespero desenhou-se. Riu em total silêncio da própria figura — Fizeram-me acreditar. Fizeram-me... — calou-se sem parar de aplicar a punição.

Provava do frio, enfim. Amargura e solidão igualmente. Odiava-se, acima de tudo, por ser diferente. Na terra sem ventos, suas penas ensanguentadas caíam por entre os dedos para desaparecerem, esquecidas na neblina.

— Descobriste a ilusiva igualdade — nem próximo ou distante, a intrometida voz sóbria e fatalista insistia em lhe fazer companhia — Deverias alegrar-te. Estás liberta.

— E minh'alma? — Hesitou, começando a ter dimensão da aflição ao apanhando várias plumas, separando-as de sua carne ferida para igualmente descartá-las.

— Jamais tiveste-a.

— Não...

— Aceite a crueldade da Existência. A sina não fora feita justa para nós.

— Nós? — Os olhos da celestial almejaram erguerem-se. Fatigados, desistiram. Sabia o que encontraria. A falta de forças também lhe impedia continuar. — Tu és a lenda desmistificada. Disseram-me que não havia mais ninguém como eu, que não havia espaço para mim, que...

— Que teus pensamentos divergentes eram únicos e deviam ser mudados. Melhor dizendo, domados. — Preciso, ele a fez sentir uma adaga no ventre com suas palavras. — Deixe-me adivinhar; teu crime fora dar-se ao direito de ser tu mesma.

Uma vez mais, a voz lhe contou o que não tivera coragem de assumir.

— Sim. O pecado de discordar... com outra visão sobre a Existência. — Aos poucos, a pele machucada das asas ficava exposta. Sua forma ficava crua e suja. Os punhos carregavam o registro do sangue e das eventuais gotas lacrimejadas. O brilho de sua pele escurecia sem que percebesse. — Qual a razão de ter nascida um erro?

— Erro? Não. Tu és uma dádiva, incompreendida.

Perturbações na Aura d'ela.

Ira e desgosto. Toda a oportunidade de ter exaltado ao lado dos Grandes, todo o potencial que acreditou ter em si para orgulhar aos demais...

... e fracassara.

— Estacas d'gelo perfuram as veias de minha fraquistência e sopro ar álgido de meu débil ser. Crês que fomos providos para sofrer? Que fomos feitos para aguentar tamanha dor? — Lágrimas angustiadas despencavam de seus lábios e queixo, mas outras escorriam pelo pescoço. — Crês que tenho coragem de olhar aos Céus novamente?

Até que se dera conta que até mesmo seu choro derramava o sangue que já fora puro.

— Os Céus não são o único caminho. Verás que não estás sozinha e que podes trilhar qualquer direção em que teus pensamentos lhe guiarem. Sem grilhões, livre do julgo.

Não havia mais penas a serem arrancadas. As asas nuas, em pura carne machucada, incapacitavam-na de retornar. Se fora expulsa ou se expulsara a si mesma, pouco importava.

— Não retornarei ao berço da hipocrisia sagrada, ao ninho das mentiras confortáveis, ao leito da impotência divina. — Rangeu os dentes. — Não curvar-me-ei ao que não acredito para ter a aceitação Deles.

— Então não se curve, maravilhosa cria.

Com a face e as vestes maculadas de sangue, os orbes viajaram lentamente para cima, ganhando visão da terra das brumas a da origem voz que se aproximara dela.

Onde que imaginara vislumbrar caos, encontrara tranquilidade. De grandes asas ósseas, a figura de longos fios negros e túnica cinza lhe estendia a mão para que ela se levantasse. 

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