IV - Nada à dizer

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Já se passaram três dias desde a ligação, e pelo jeito, as coisas estavam saindo do seu caminho normal. Bruna estava "muito amiga" de um dos galãs do colégio, e aos poucos, fora deixando de lado a tradição, e sua irmã. Sentindo-se só, Sophia passava as tardes enfornada na biblioteca, lendo particularmente livros de Machado de Assis. Tentando afastar sua mente da tristeza, a garota pensava em seu príncipe encantado, meio pessimista (achava que era fora da caixa, e feia demais), mas logo a nuvem de maus pensamentos desapareceu com a chegada de Cinderella.

A cadelinha indicou com o focinho uma moeda que estava em cima da mesa, e fez com que Sophia se lembrasse de algo que tinha guardado há tempos. Ela foi direto para casa depois da aula, e pôs-se à garimpar o porão, atrás do presente de natal que havia ganhado aos 11 anos.

- Achei! - disse, tirando a poeira de um velho caldeirão.

Ela foi até a cozinha, pegou uma jarra cheia d'água, fubá e pegou 2 cravos no jardim. Bem no meio do porão, o caldeirão, com tudo aquilo dentro e cozinhando.

- Ok...Destino, por favor me manda um príncipe. Um que me ame pelo que sou, que seja gentil e amável, corajoso. Acho que pedi demais. De qualquer jeito, me ouça. - e lançou a moeda que havia achado na biblioteca no caldeirão, que começou á borbulhar absurdamente, e Cinderella deu um latido animado.

Era um bom sinal. Suas preces chegaram nos ouvidos do onisciente Destino.

O fim de semana veio. O céu estava clareando, e uma brisa fresca entrava pela janela do quarto. Sophia acordou com uma pedrinha caindo em sua cama. Lá em baixo, na porta da casa, estava Richard.

- Se arruma logo, Sophi! O cara chegou!
- Droga Rick! É sábado, e são exatamente 6 e meia da MANHÃ! Mas tem certeza? É ele?
- Não bobinha, o Roger com quase 2 metros de altura. - Ele ironizou.

Maravilhada com a notícia, ela vestiu sua melhor roupa, arrumou o cabelo em um penteado e calçou os sapatos novos que havia comprado. Correu, e quando saiu de casa, batendo a porta, acordou sua irmã. A disputa estava iniciada.

Na casa de Richard, o ar de ansiedade ao redor dela poderia ser cortado com tesoura de tão denso. Sophia nunca tremeu tanto. Ela viu Roger e seu primo, em uma acirrada e engraçada disputa de xadrez. O gringo levantou-se, dando um tempinho na partida.

- Oi Sophia.
- Oi.
- Onde está a Bruna?
- Vindo, eu acho..
- Quer conhecer meu primo?

Não era preciso de resposta para tal pergunta desnecessária. Roger foi com ela até a sala de jantar, e enquanto passavam pelo corredor, ela notou que ali haviam muitas malas (Os Clegg agora eram convidados da família. Coitado do Rick, teria de defender seu território.), e à cada passo, ela tremia mais e mais.

Entrando na sala, seus olhos o encontraram. Era alto, levemente magro, sua pele tão clara quanto á de Roger; seus cabelos eram cortados curtos, dando aquele arzinho de profissional manjador das grandes manhas de algum negócio, castanho-claros, com suas mechas pequenas e teimosas caindo na frente; seus olhos eram do tom mais escuro de azeviche, intensos e emotivos; seu nariz era angular, afiado como a ponta de um desses ângulos de 45°, realçando a suposta seriedade; vestia calças e camisa sociais pretos, e em cima da camisa, um blazer verde-escuro; no pulso, um bracelete de Prata, encravado com quartzos leitosos; nos pés, um par de All-Stars.

Roger chamou seu primo. Quando o gringo se aproximou, ela não conteve a alegria, e deixou escapar um radiante sorriso, que iluminou todo o seu rosto.

- Roger comentou sobre você e sua irmã. Ele estava errado quando me disse que era um monstro de tão feia. Você é bem mais charmosa do que eu esperava, Sophia. Henry Eric Bertran Clegg ao seu total dispor.
- Nossa...
- Eu sei, - interrompeu Roger. - Ele fala português BEM melhor que eu e nem tem esse sotaque horrível.

Roger referia-se ao típico sotaque norte-americano, que às vezes era o motivo para Rick fazer mais provocações. Henry rolou os olhos, desprezando o comentário.

- Prazer.... - disse Sophia, tímida, desviando o olhar.
- O prazer é todo meu.

Ele deu um gentil beijo na mão dela. Queixos caíram sala agora. Roger e Rick estavam ocupados demais brigando, os anfitriões e a irmã dela estavam paralisados, incrédulos. "Só podia ser mesmo um lunático pra achar ela bonita.", pensou Bruna.

O choque do momento a fez corar horrores. Sophia nunca havia sido tratada de forma tão gentil. Henry a olhou com ternura, e ela, tentando à todo custo evitar que seus olhos se fitassem diretamente. Não havia nada à ser dito, a cara dela já valia mil palavras.

O Sol do meio-dia queimava, imponente, nos vastos céus azuis da cidade. Enchendo uma grande picape com malas, armas e suprimentos, Rick, Roger e Henry iriam sair para a grande caçada, porque já estavam séculos atrasados.

Brigando com a irmã, Sophia recitava em ficar. Aos gritos brandava, dos fundos de seu ser:"você não faz ideia do que é amor á primeira vista!". Desesperada, a antes solitária implorava para ir e fazer companhia para seu príncipe, ignorando os avisos óbvios de perigo e opinião alheia. Cansada de ouvir a ladainha de Sophia, Bruna e sua mãe tiveram de ceder.

Arrumando as malas, enfiando tudo que precisava de qualquer jeito em uma mochila, a jovem viajava em um mar de pensamentos, recordando o olhar terno do gringo, acariciando a mão que ele havia beijado, e delirava, envolvida pelo novo sentimento: o amor.

Marcava-se 2 da tarde no relógio, e todo mundo entrou no carro. Roger iria dirigir, Richard iria ser o navegador, e Henry teria a honra de ter o banco de trás inteirinho para si mesmo (o que fez o mineiro bufar fogo), mas já era fato que não iriam sozinhos.

Sophia entrou no carro. Ela em uma janela, ele na outra. Vermelha como um pimentão, ela o olhava ora sim pra não, disfarçando. Quando o gringo percebia, dava um leve, meigo sorriso. Nos bancos da frente, Roger e Rick lutavam para se concentrar na estrada, resmungando aqui e ali como o outro era inútil. Pareciam que eram irmãos...

E a viagem foi seguindo. A tarde virou noite, e o frio da Serra havia chegado. Com os vidros fechados, escuros, o anoitecer ganhou um tom novo. A fraca luz da frente batia atrás, como um abajur, e ela sentiu sono. Com receio, se aproximou dele.

- P-posso? - perguntou, sonolenta.
- Fique á vontade.

Ela se escorou nele, deu uma espiadinha em sua face e caiu no mundo dos sonhos. Henry à cobriu com o casaco, e a fitou por um bom tempo. Sem os óculos, Sophia ficava ainda mais bela aos olhos dele. Um leve Synthwave tocava no rádio, e o murmúrio dos dois imbecis na frente não atrapalhava em nada. Ele se perguntava o porquê de achá-la tão linda.

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