A notícia sobre o acidente na rodovia principal se espalha por toda a rede. Jornais transmitem o resgate das vítimas ao vivo. Uma criança aparece com o crânio fraturado, sem mostrar reação, e uma idosa está presa às ferragens. Gritos incessantes ecoam atrás da repórter. Nas redes sociais, os comentários são diversos. Pessoas buscando notícias dos parentes envolvidos no acidente, cristãos rezando pela recuperação dos feridos, curiosos sobre os nomes dos passageiros. Um dos comentários, entretanto, chama a atenção do entediado analista. Escrito em letras garrafais, o usuário chamado "SuperRevolts66" deseja que todos os feridos morram, pois a notícia ficará mais impactante, chamando a atenção da mídia internacional para o país. As respostas são pesadas. Vários usuários ameaçam o SuperRevolts66, desejando que ele se atire da ponte ou pedindo sua prisão. O causador da intriga não se importa com as críticas e se defende utilizando termos como "direito de opinião" e "o Brasil só vai crescer com grandes manchetes".
Casos como este ocorrem a cada minuto na internet. O analista sabe disto. Qualquer notícia chocante traz à tona pessoas como esta que, para ele, não passam de escória. A face do ser humano se mostra nestas poucas linhas escritas sem nenhuma empatia. Ele sabe que essas pessoas estão em todo lugar e nunca vão mudar, protegidas pela barreira do anonimato. E mesmo que a polícia receba a denúncia, nada aconteceria. Uma grande pena.
O telefone toca. O analista para de ler os comentários no portal e atende a ligação. É o cliente reclamando do atraso do desenvolvimento do site. Pela terceira vez naquele dia, e não irá aguardar nem mais um dia. O site que o analista desenvolveu para esta empresa está pronto, mas precisa de um reajuste no recebimento de dados dos usuários. Um problema que ele precisa resolver ainda hoje, movido a muito café e Red Bull.
Duas horas da madrugada. O analista quase desiste de resolver este problema, mas percebe algo inédito para ele. O rastro dos IPs. Nada relacionado ao cache ou ao armazenamento do site. Cada mensagem gravada em um site tem um rastro invisível de metadados que leva ao IP de origem. Tal rastro sempre foi possível com a ajuda do host, mas o analista percebe que, analisando da forma correta o vestígio deixado pelas mensagens gravadas em sites, ele pode descobrir o endereço físico de origem ao confrontar os dados com as informações registradas nos servidores. Entusiasmado com a sua descoberta, ele retorna para a notícia do acidente do ônibus que leu mais cedo. A mensagem do SuperRevolts66 está lá, com inúmeras respostas negativas. O usuário, nessa altura do campeonato, já ameaçou matar todos os que o criticavam, sem sequer considerar seus argumentos ofensivos. O analista busca o rastro do SuperRevolts66. Não demora muito e descobre seu IP. Rastreando pelo host de origem, descobre que ele mora a três quadras da sua casa. Não do outro lado do país ou em outra cidade. Ele está no mesmo bairro.
Uma chama ardente cresce no analista. Toda a injustiça que estes seres repulsivos causam na internet finalmente pode ter fim. Ele pode rastrear e denunciar. Ou ele pode fazer mais. Algum tipo de punição imediata. Pessoas sem nenhuma empatia não vão melhorar. O máximo que elas passarão é por uma reclusão de alguns anos e logo voltarão para aterrorizar a sociedade. Sim, o analista precisa agir por conta própria. Ele precisa ser o vigilante que a sociedade precisa. Um verdadeiro guerreiro da justiça social. E ele começará sua carreira de herói contra o SuperRevolts66.
O analista veste uma calça e camiseta de manga longa, ambos pretos. Coloca um gorro de motoqueiro preto e um óculos de natação. Luvas pretas e tênis preto. Um herói nasce nas sombras da cidade, ele pensa. Antes de sair com sua moto, ele pega o revólver do seu velho pai. Ele ainda não sabe como vai lidar com os vilões, mas é bom ter uma opção segura como uma arma de fogo.
Ele chega no endereço. Um sobrado com muro baixo. Apenas uma luz está acesa, no andar de cima. Algum barulho vem de lá. O justiceiro pula o muro sem dificuldade e escala o cano de vazão externo, subindo na varanda. Ele chega próximo à janela. Seu coração salta pela boca. Sua adrenalina queima nos olhos. Suas mãos, mesmo tremendo, seguram o revólver calibre 38. Chegando próximo da porta de vidro, ele abre de supetão e aponta a arma para dentro.
Com a TV ligada em um filme de conteúdo sexualmente explícito, um garoto assiste os seios balançando, vidrado. Suas espinhas enchem sua testa. Ele não nota o invasor o observar, perplexo. O justiceiro pisa em um carrinho sem perceber, atiçando a curiosidade do garoto. Ambos se encaram antes do garoto gritar. O herói, assustado, mira a arma em direção ao jovem e manda ele calar a boca, antes de perguntar:
- Você... Você é o SuperRevolts66?
O garoto se assusta ainda mais quando ouve este nome. Claro que é ele. Pergunta idiota, mas funcionou. O justiceiro não acredita no que está fazendo. O garoto diz, assustado:
- Pode levar qualquer coisa! Leva meu Playstation também, mas não me mata! Eu não fiz nada!
- Não fez nada? - O herói sente seu sangue ferver. - Você desejou a morte daquelas pessoas no ônibus e ainda diz que não fez nada?
- Eram só palavras! Me desculpa!
- E se fossem seus pais que estivessem naquele ônibus? Você ia achar graça também?
- Me desculpa! Me desculpa se tinha alguém que você conhece lá! Eu prometo que não faço mais isso!
- Não, não tinha ninguém que eu conheço entre os feridos. Eu só... Só quero fazer justiça.
As calças do garoto encharcam. Ele implora para o Herói Social pegar logo o que quiser e o deixar em paz. As mãos do justiceiro tremem. Acidentalmente, ele puxa o gatilho.
Um baque ensurdecedor ecoa na casa. A televisão é perfurada pela bala. O garoto, sem ar para gritar, desmaia. O herói corre sem olhar para trás.
O dia amanhece. O cliente recebe o site atrasado, mas reclama do layout. Diz que as cores deveriam ser mais vivas, mesmo que não combine com o seu propósito. Os portais na internet noticiam a invasão de uma casa a poucas quadras dali. Um garoto que estava sozinho dentro de casa foi levado para o hospital, em estado de choque. O analista bloqueia todos os comentários dos portais e exclui sua conta no Facebook. Um latão queima no quintal, com roupas pretas dentro.
O herói se aposenta.
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Herói
Short StoryA internet rege a nova cultura mundial. As imposições pessoais sobrepõem as noções de empatia e sociedade. O caos domina as redes sociais com discussões inúteis sobre política e civilidade. O Herói está cansado disso. Ele resolve agir no mundo offli...