Conto I, 1° parte: Renascimentos.

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Elena amava o fundo do mar.
Era estranha a forma com que se relacionava com um monte de água, coral e alga. Nadava sempre que podia, desde pequeno. Ser mergulhador profissional era o seu sonho.

Nadando por entre as algas presas ao chão marinho, o garoto se misturava com a paisagem. Olhou pra trás, sua cauda reluzia em cores semelhantes às do seu entorno: verde escuro, turquesa e todas as outras tonalidades de verde azulado possíveis. O brilho metálico fazia parecer uma fantasia sob suas pernas humanas, mas sabia que, mesmo se tentasse, não arrancaria nem uma escama.

Olhou para cima em algum momento da jornada: o sol parecia estar a pino, de acordo com a incidência na água. Elena aproveitava todas as habilidades que adquiriu durante os mergulhos que fazia antes de conhecer Miguel, seu atual melhor amigo, o príncipe dos mares e futuro rei de seu governo aquático.

O verdadeiro sereiano costumava surfar na mesma praia em que Elena mergulhava. Num dia, Miguel perdeu o controle de sua cauda, deixando-a surgir enquanto estava em cima da prancha. O que parecia um acidente horrível se tornou ainda pior: havia se cortado na quilha quando caíra, e o sangue se espalhava rapidamente na água. O pesadelo tomou total controle da situação quando Miguel percebeu que havia um humano olhando-o por entre os corais.

Aquele terreno tinha de vir hoje, né? Pensou. Pelo menos, de todas as pessoas, Elena era o mais tranquilo, na visão do sereiano, de enrolar. Já haviam conversado antes, sempre assuntos meio exotéricos como o céu, a terra, a água e o ar. Apesar de todas as interações amistosas na arrebatação da praia, os dois nunca se permitiram ir mais além de conversas banais. Os dois, também, nunca deixavam de aparecer no dia seguinte e poder observar, por mais uns minutos, cada um deles fazendo seus hobbies.

Nadou, portanto, em direção ao humano escondido, percebendo que ele havia se assustado. O medo se distinguia na água salgada da mesma forma que o sangue real de Miguel fazia. O mar era uma entidade por si só, o príncipe sabia disso. Ninguém controla a maré, e ninguém controlaria o que a água decidiria fazer com você, caso tentasse. Sentia, porém, mudanças sutis cada vez que se aproximava de Elena, como acontecia agora. Chegou perto do coral e disse-lhe:

— Pensas que não sinto-te aí atrás, às escondidas?

Elena riu. Não pareceu se incomodar com a concentração de ar respirável que agora perdia com as bolhas que subiam até a superfície. Chegou perto de Miguel, apertou-o na mão e levantou-lhe o braço, indicando que gostaria de subir. Prontamente, o sereiano acatou, levando o humano até o encontro do ar.

— Você é uma caixinha de surpresas, hein. — Disse Elena.

— Vais me dizer que nunca te pergustaste de onde vinha tamanho conhecimento marinho? — Respondeu Miguel com sarcasmo. Os dois riram, e Elena concordou com ele. — Agora, porém, terei de matá-lo.

O sorriso some do rosto de Elena. Miguel, porém, sorri ainda mais.

— Ou serás obrigado a tornar-se meu melhor amigo. A escolha és tua.

— Acabei de ver você com uma cauda de sereia, e agora as opções do procedimento padrão são me matar ou virar seu melhor amigo? Que raios que tá acontecendo?

— O "procedimento padrão" — diz Miguel, fazendo aspas com as mãos — termina onde eu te mato. Porém, não gostaria de perder tão agradável companhia.

— E você pode escolher seguir ou não o procedimento padrão?

— Claro, sou o príncipe. — Responde, com tom de obviedade.

— Príncipe? Posso saber de onde? Ou vou morrer se descobrir? — O príncipe ri, dessa vez de forma gostosa, de quem legitimamente achou graça. O timbre da risada envolve e arrepia o humano, e a maré empurra-os para mais perto. Da mesma forma, a prancha se aproxima da dupla, e Miguel oferece-a para que Elena sente.

— Se não te matei por ver minha cauda, podes ter certeza de que não o matarei por saber mais. Sou Príncipe Miguel, nativo de Coral da Pérola, capital do mesmo reino que hei de herdar, Pérola.

— Coral da Pérola é capital de Pérola? Quanta criatividade. — O príncipe ri, e continua a explicar o seu lugar de origem. Naquele momento, Elena lembra-se, o sol estava se pondo, começando a beijar o mar. A água quente parecia sempre empurrá-los para mais perto, a ponto de, em um dado momento, Miguel deitar a cabeça nas pernas de Elena, enquanto  boia com o resto do corpo. A cauda reluzente do sereiano brilhava com tons infinitos de azul, parecia ser feita das safiras mais puras. O humano, distraído pelo brilho encantador e pela voz inebriante do príncipe, começa-lhe a acariciar os cabelos. Passam, assim, o resto da tarde e começo da noite.

De volta de seus pensamentos, Elena percebe que está próximo de Coral da Pérola. Sua mente, dolorida de viajar por entre as memórias, estava, apesar disso, dopada com a calmaria que aquelas lembranças a traziam. O primeiro encontro com uma das várias faces que o melhor amigo havia sido especial para ambos. Os dois haviam ganhado um confidente naquela tarde, uma pessoa com quem confiar quando ninguém de seus mundos parecia entender-lhes.

A água começou a tornar-se límpida e mais leve, diferente do peso característico da água do "mar de ninguém", e Elena sabia que havia agora entrado em domínios do reino de Pérola. Em torno de uma hora, o sereiano de caudas verdes se encontraria com o humano-agora-meio-sereiano de caudas azuis, após tanto tempo separados.

A lembrança dos motivos que causaram a pequena separação trouxera-lhe raiva. Miguel estava para comemorar renascimentos, como chamavam os aniversários ali embaixo, e, pela sua idade e por ser príncipe, aquele seria o maior e último baile de renascimento da sua juventude. O amigo estava virando adulto, Elena sabia, apesar de não saber exatamente quantos anos ele estava comemorando. Tinha conhecimento, porém, de que esse era o baile onde deveria encontrar um par para a sua subida no trono, quando fosse chegada a hora de assumir o reino.

— Resumindo, você está morrendo de ciúmes Elena. Você é um humano e só o melhor amigo do príncipe. Não há nada que possa fazer pra mudar isso e você sabe. — Elena diz para si mesmo. Uma dor rasgou-lhe o coração, mas mesmo assim continuou sua jornada. Era um momento importante para o amigo, não podia faltar a data. Sabia que ele vinha preparando toda a festa há semanas e, agora, na última semana antes do evento, deveria dar todo apoio e suporte que o príncipe precisava. É pra isso que servem os melhores amigos, não?

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