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Como é que as Coisas se sentem?

Parecia uma pergunta estúpida antes de anunciarem a questão, agora tudo fazia sentido. Quando uma pergunta como essa surgia eram empreendidos esforços implacáveis até que as respostas fossem obtidas. 

Começaram pelo básico tornando claras as conjecturas mais óbvias sobre o pressuposto sentimento das Coisas, divagaram por alguns minutos até que foram interrompidos. 

- Se as Coisas sentirem algo o fato de não podermos confirmar essa realidade nos dá o direito de ignorar o possível sentimento delas? 

A pergunta pairou pelo ambiente com alguns poucos amparos lógicos que a mantinham na realidade.

- Você sempre faz isso.

- Isso o quê?

- Torna as coisas mais difíceis.

- Não sei o que quer dizer

- Não podemos provar a nós mesmos que as Coisas sentem. Como vamos provar a outra pessoa e ainda decifrar e responder essa sua besteirada filosófica?

Uma expressão de desaprovação se fez ouvir!

- Parece que a cada dia você se esforça para ser mais trivial que o anterior.

Uma réplica a altura da ofensa foi proferida. Foi o suficiente para a situação se restabelecer. 

- Podemos voltar a questão agora?

- Tudo bem, para sairmos do emaranhado de indecisões em que estamos precisamos admitir algo.

Mergulharam numa inflexão profunda e compenetrada. Alguém incitou.

- Talvez seja muito cedo para admitirmos que as Coisas sentem. Podemos partir de um outro pressuposto.

Pareceram exitantes enquanto organizavam mentalmente as peças do paradigma. 

- Precisamos admitir isso, balbuciaram. 

- Se não concordarmos que as Coisas sentem não temos nem por onde começar a investigação, precisamos de um ponto de partida.

Muitos certos do que diziam conduziram a saga até uma biblioteca importante da região para uma série de leituras investigativas. Encontraram pouquíssima coisa que interessasse, os textos que mais se aproximavam do assunto não passavam de devaneios exotéricos sobre realidades paralelas. 

A teoria não era absurda mas a dúvida parecia ser intragável demais para uma resposta tão redundante. 

No caminho de volta da biblioteca ligeiramente abatidos ainda se encontravam presos aos próprios pensamentos.

- Esperava que essas leituras nos dessem alguma resposta. O desapontamento era evidente. 

- Não se preocupe, eu acredito que as respostas estão nos livros, só precisamos acertar o alvo. 

- O que quer dizer? Acha que pesquisamos o assunto errado? 

- Não necessariamente, só acho que temos de ser mais minuciosos. 

- Alguma sugestão vai surgir de todo esse mistério ou vamos continuar com o suspense? 

- Saiba que minha habilidade de te ignorar melhora a cada dia

- Me ignorar não parece ser o que está fazendo agora

- Se já terminou eu gostaria de voltar ao assunto

- Está esperando um convite por escrito?

Se olharam suspirando sinalizando um cessar fogo temporário. 

O raciocínio foi tomado dessa vez com um tom mais sério. 

- Veja bem! Procuramos por sentimentos em Coisas, talvez devêssemos buscar por algo mais elementar. Como o sentimento ou a definição de sentimento em si. 

- Tens toda a razão, se pudermos definir o que é sentimento poderemos analisar todas as formas na qual um sentimento possa se manifestar. A partir daí observaremos como as Coisas se encaixam nesse parâmetro. 

- Parece que finalmente estamos encontrando possibilidades

As pesquisas seguintes afunilaram os caminhos, as definições encontradas para o verbo sentir na literatura disponível era precária. Tudo muito primitivo, como enciclopédias sobre os cinco sentidos físicos e um ou outro artigo pincelando grotescamente o emocional. 

Após as infrutíferas investidas no campo literário pararam para discutir as opções. Tinham o hábito de refletir longa e silenciosamente antes de iniciarem uma discussão. 

Ainda estavam distantes no pensamento quando a primeira frase foi murmurada. 

- Não creio que esteja nos livros 

- O que disse?

- Não creio que o que procuramos esteja nos livros

- A reflexão anterior à essa conversa deveria servir para descartar as afirmações óbvias 

- Não! Não entendes. Não acredito que esteja em livro algum, não acho que possa estar.

- Seja mais específico

- Veja bem! Mesmo que a exata e completa definição de sentir esteja num livro não há garantias de que é a correta, ninguém poderia decidir isso. sentir é algo absolutamente individual e íntimo, tecido nas profundezas do ser de modo que somente o indivíduo possa presumir em si as predefinições incutidas nesse sentir que é inerente a sua existência. 

- E ainda diz que eu gosto de complicar as coisas

- Essa possibilidade não te preocupa?

- De certa forma, se não pudermos definir o sentir não poderemos provas que as Coisas sentem.

- É pior do que isso, se o sentir não puder ser definido não temos como entender que alguém ou coisa alguma possua a habilidade de sentir. 

- Tens razão, seria como aceitar que ninguém sente e nada sente.

- Mas se assumirmos esse ponto de vista não haverá salvação para as Coisas

Uma constatação pareceu se afirmar no lugar de tantas dúvidas. 

- Porque estamos fazendo isso?

- Pelo sentimento das Coisas 

- Não! Estamos fazendo isso por respostas e acho que já encontramos uma satisfatória.

- Se a resposta for ignorar o problema acho que sim

Houve um silêncio carregado antes que prosseguissem.

- Não! não estamos ignorando o problema, estamos ignorando a possibilidade de existência do problema em si. Existência essa que só poderia deixar de ser ignorada caso se fizesse presente. 

Uma onda de alívio chegou e após mais algumas conjecturas decidiram por essa única razão, e pior, admitiram que não há salvação para nada e para ninguém e compreenderam finalmente que era mais fácil acreditar que ninguém sentia absolutamente nada do que imaginar que uma Coisa pudesse sentir algo.

Após o sofrimento das Coisas, o empenho nas pesquisas, a negação do sofrimento entre outras divagações a dita solução foi encontrada seguindo um caminho iluminado por toda a lógica de que dispunham, encontravam-se agora em um lugar onde estavam ética e moralmente ilesos. Isso era mais que o suficiente. Era tudo que precisavam saber. 

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