Capítulo Único

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Marcela podia ler pessoas.

Não as lia como um detetive das histórias faria, prestando atenção em suas expressões faciais ou em sua linguagem corporal. Tão pouco dava importância a pequenos detalhes de suas vestimentas, ou ao tom de suas vozes. Ela não necessitava ver uma pessoa escrever, ou agarrar um objeto no ar, para saber se era canhota e não precisava olhar nos seus dedos anelares para saber se era casada ou, pelo menos, noiva. Não era preciso ler o título do seu livro gasto, guardado na estante, para saber que aquele era o seu favorito, ou mesmo saber a razão disso.

Marcela lia pessoas, como pessoas leem livros. Capítulo por capítulo, página por página, palavra por palavra. Não podia ler os capítulos futuros, mas também, quem podia?

Marcela também adorava livros. Adorava qualquer tipo de história, impressa ou na forma de alguém. Por isso trabalhava naquela biblioteca, para poder ler tudo ali, pessoas e livros igualmente.

Sentava-se em sua mesa e abria um novo romance. Folheava as páginas e descobria que o mocinho era traído por seu melhor amigo, mas vencia no final; que a mocinha amava aquele homem, mas seus mundos eram diferentes demais para poderem ficar juntos; e que magia era algo real, pelo menos no meio daquelas folhas amareladas.

Quando se cansava dos livros, ela olhava ao seu redor e escolhia uma pessoa a qual a interessava ler, de preferência uma que ainda não conhecia, com histórias inéditas e misteriosas. Se não houvesse nenhuma nova, escolhia uma conhecida e relia seus capítulos preferidos.

Como Augusto, que vivia na biblioteca, estudando para ser advogado e sempre ajeitava os óculos quando lia uma passagem que achava interessante. Marcela adorava ler a parte em que ele descobria que havia passado no vestibular.

Ou Eliane, cuja vida romântica era material para os livros mais vendidos. O capítulo em que ela vencia o câncer e descobria que seu verdadeiro amor não era o homem que namorava, mas seu antigo amigo de infância, era um dos melhores. O dia em que Eliane foi pedida em casamento também era uma constante leitura para Marcela.

Ela lia Seu Fernando apenas quando se sentia realmente triste e nenhuma história alegre bastava para melhorar seu humor. Às vezes, é necessário colocar-se no lugar de alguém que conhece o verdadeiro sofrimento para dar-se conta de sua felicidade. O suicídio de Otávio, o filho de Seu Fernando, sempre a levava aos prantos, como fizera com o pai.

Porém, havia algo que sempre a deixara intrigada.

Marcela levantou-se de sua mesa e caminhou até a parede, olhando-se num grande espelho que ia do chão ao teto e parecia deixar a biblioteca maior. Não observou seus cabelos castanhos ou sua pele bronzeada, muito menos seus olhos escuros ou seu nariz levemente arrebitado. Ela encarou seu âmago e folheou suas próprias páginas. Todas as palavras estavam borradas e ininteligíveis. Sempre foi assim, desde que descobrira seu dom.

Marcela não podia ler a si mesma.

Tentara inúmeras vezes, sem sucesso. Às vezes distinguia uma palavra ou outra, às vezes até o título de um capítulo. Nascimento, Orfanato, O primeiro livro, A descoberta do dom, O primeiro beijo, A Biblioteca, Palavras vivas... Frases que não significavam muito para outro alguém, mas eram importantes para ela, pois recontavam suas memórias, mesmo que sutilmente.

Quando pequena, Marcela queria poder ler sua própria história mais a fundo e entender melhor a si mesma. Demorou algum tempo para aceitar sua limitação. Lutou diversas vezes contra sua imagem no espelho e as palavras borradas em suas páginas. Quando cresceu, entendeu que aquilo não era uma restrição imposta somente a ela, mas algo intrínseco ao ser humano.

No fim das contas, nem sempre podemos entender a nós mesmos.

Deu-se então como satisfeita por poder ler as outras pessoas. Era um dom que ninguém mais tinha e que ela passara a estimar.

E foi assim que pôde ler Roberto, quando ele entrou na biblioteca carregando aquele revólver.

Ela sabia que a arma pertencera ao seu avô e que ele ensinara Roberto a usá-la. Sabia que estava carregada e, principalmente, por que ele pretendia usar.

O que você faria se pudesse ler pessoas? Se esse seu dom lhe permitisse fazer o bem? Se pudesse salvar seu personagem favorito em uma história?

Marcela sabia a resposta e por isso, mesmo temendo por sua vida, caminhou até Roberto ao mesmo tempo em que ele apontava a arma para Eliane.

− Beto, o que você tá fazendo?! – Eliane gritou ao se levantar.

− Vou recuperar minha honra! – Roberto respondeu, a voz baixa e trêmula.

Marcela se colocou na frente da arma num impulso imprudente e folheou depressa as páginas de Roberto.

− O que você tá fazendo? Sai da minha frente! – o homem rosnou para ela, o desespero tomando forma em suas palavras.

Ao chegar à última página, o temor que Marcela sentia pelo homem desapareceu como gotas de chuva na areia fofa.

Ela sorriu ao dizer:

− Você não quer fazer isso, Roberto.

− E quem é você pra saber o que eu quero ou não quero?

Marcela cruzou as mãos em frente ao seu corpo e fitou Roberto com a ternura de uma mãe.

− Eu sei que você não quer atirar em Eliane de verdade e que essa bobagem de lavar a honra com sangue foi algo que seu avô colocou em sua cabeça...

− Como você...?

− Sei como ficou triste quando Eliane descobriu o câncer nos ovários, mas que também ficou aliviado ao saber que ela talvez nunca tivesse filhos. Você nunca os quis, afinal. Sei como ficou feliz quando a doença regrediu e como ficou magoado quando Eliane o trocou por Tiago, mas sempre soubera que ela o amava, mesmo que ela ainda não o soubesse...

− Como sabe...?

− O que quero entender, Roberto, é por que você está aqui, jogando sua vida fora, quando podia seguir seu sonho de se tornar um pintor. Você não precisa sentir-se culpado por ter gostado daquela menina que elogiou suas telas quando você ainda namorava. Agora pode perguntar seu nome, chamá-la para sair e talvez viver um amor maior do que teria com Eliane.

Roberto balbuciou algo quando lágrimas escorreram por suas bochechas. O revólver engatilhado tremia em suas mãos.

Marcela deu um passo a frente ao dizer:

− Mas primeiro você tem de abaixar a arma.

Marcela lera Roberto por completo e por isso sabia que não havia perigo. Sabia que ele nunca iria machucar alguém ali.

Por isso, quando a arma disparou, soube que havia sido apenas um acidente.

Marcela olhou para sua barriga, onde uma rosa de sangue desabrochava em seu vestido branco. O estampido ainda ecoava em seus ouvidos quando seu sorriso, estático com a surpresa, se desfez aos poucos. Ela não sentiu dor logo de início, apenas o calor e a umidade escorrendo por seu abdômen. Suas pernas desapareceram abaixo dela e o chão de madeira veio de encontro ao seu rosto.

No meio de toda a correria e dos gritos incompreensíveis, Marcela girou a cabeça e olhou para o espelho na parede.

Folheou suas próprias páginas e notou que suas palavras não estavam mais borradas como antes. Estavam claras como as de qualquer pessoa ou livro que já lera. Marcela finalmente pôde ler a si mesma.

Ela não queria morrer.


Fim

* * *

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