Dalborga era um homem conservado. Mesmo tendo 45 anos, sua pele era macia, nutrida e brilhante, de rugas atenuadas e coloração bronzeada, retendo sua elasticidade graças ao consumo diário de proteínas sintéticas. Estas eram baseadas na carne de boi, frango e peixe, repositores de colágeno.
Não era um metrossexual. Não desejava seguir os padrões seletivos dos comerciais de cosméticos. Apenas se acostumara a cultivar hábitos saudáveis.
Foi educado a manter-se arrumado e limpo, já que seus pais, pertencentes à geração do culto ao corpo, trataram-no, durante toda sua infância e adolescência, como um poodle em vésperas de concurso de mascotes: com visitas frequentes as clínicas estéticas, verdadeiros pet shops para humanos alinhados, e propondo-lhe uma alimentação orgânica balanceada, que acabava custando, mensalmente, muito mais do que uma simples cesta básica.
Vestia uma calça social escura e uma camisa de manga comprida azul clara, com uma toalha de rosto branca pendurada ao pescoço, que encobria sua gola. Seus olhos eram escuros, estreitos e disciplinados, brilhando em experiência e sabedoria, tendo já contemplado, ao longo de sua vivência em Londrina, os ipês roxos do Centro Cívico, antes destes serem derrubados por um violento ciclone tropical, em consequência do aquecimento global, e também as pombas amargosas de pescoço verde, lá na Praça da Bandeira, antes destas serem extintas pelos rojões dos moradores locais, que decidiram resolver o problema da superpopulação aviária sozinhos.
Seu cabelo, de aspecto brilhoso e espesso, castanho como nozes sadias de uma feira livre da Benjamin Constant, penteado para trás com uma escova de madeira antiestática, era o resultado de um implante capilar bem sucedido, que fora praticado, dez anos atrás, via clonagem de células foliculares, quando a alopécia começara a atacá-lo.
Após bradar sua audível comoção, chocado com o que vira ali, sem entender o que se passara na central de vendas, imediatamente se voltou para Carolina. Queria saber se ela estava bem.
Sendo a mais nova das funcionárias, imaginou que também seria, dentre todas ali, a mais carente por amparo, muito embora fosse Fernanda quem se mostrasse necessitada, ajoelhada atrás de sua cadeira, chorando aos soluços.
Colocando a mão em seu ombro, perguntou-lhe atencioso, como se falasse à menina dos seus olhos:
— Tudo bem com você, Carolsinha? Não te machucaram?
Para Carolina, foi uma preocupação embaraçosa. Não gostava de ser mimada pelos outros, independente de quem fosse. Colegas de trabalho, familiares, atendentes de lanchonete: ninguém era capaz de agradá-la assim, aos mimos.
Mesmo porque, ela preferia que Dalborga dedicasse seus cuidados à Fernanda. Ou mesmo para Seu Paulo, se ele assim o quisesse.
Estando eles na frente de Alice, a simpatizante bolsonária pró-eugenia, que ainda há pouco afirmara ser ela, Carolina, o modelo de genética ideal para o Brasil, nada pior do que, agora, Dalborga lhe oferecer tratamento especial, como se ela fosse uma princesa dinamarquesa em terra de trolls brasileiros.
Só faria com que Alice reafirmasse para si, em doentia obsessão:
“Ela é única. Ela é perfeita. É quem estávamos procurando.”
Numa ocasião menos conturbada, Carolina teria apreciado o gesto do âncora. Até acharia graça por tê-la chamado no diminutivo, tal qual acontecera minutos atrás, quando ela esteve na redação, ainda de bom humor.
Mas naquele momento, tendo acabado de brigar com Fernanda, de discutir com Alice e de quase nocautear, com um direto no queixo, o zueiro língua de percevejo, estava tensa demais para sequer fingir-lhe gratidão, ou sequer devolver-lhe um sorriso forçado.
Tanto que, querendo ficar livre deste exclusivismo, e já começando a se condoer da promotora, decidiu redirecionar Dalborga para Fernanda. Talvez isto a aliviasse.
Acenando com a cabeça, disse:
— Estou bem. Não estou machucada. Mas acho melhor levarmos Fernanda para beber água. Ela está meio perturbada.
Dalborga tirou a mão de seu ombro e a guardou no bolso, percebendo, durante um milésimo de culpa, que dera preferência à vlogueira, visivelmente estável, enquanto ignorara a promotora, decididamente instável.
Antes que pudesse remediar isto, e antes que notasse, novamente, o idoso zueiro esticado ao chão, a central de vendas foi invadida por uma agradável e calorosa voz feminina. Vinha de dentro do estúdio de gravação, perguntando em ágil presteza:
— O que tem a Fernanda?
Alice deu um passo para trás, abrindo caminho para Cloara Presoto, a repórter socialite do Jornal Parque Emam.
Esta tinha cabelo escuro e lustroso, cortado na altura dos ombros e repartido ao meio, com franjas curtas e retas caídas sobre as sobrancelhas, e luzes ombré hair aplicadas em degradê sobre as mechas, mantendo as raízes intactas.
Por conta da profissão, que lhe obrigava a frequentar ambientes requintados da classe média alta, Cloara se vestia com grande aprumo. Usava uma camisa jeans azul, tecida com dois bolsos frontais e adornos metálicos redondos, com antebraço desbotado e colarinho folgado. A aba frontal era abotoada até a altura do decote, enquanto a barra, solta por cima da cintura, escondia o cós da sua boca de sino vermelha.
Quando bateu os olhos em Fernanda, Cloara tratou de socorrê-la. Passando pela escrivaninha, ajoelhou-se ao lado dela e abraçou-a pela cintura, fazendo com que encostasse a cabeça em seu ombro.
Perguntou-lhe aos sussurros, amável e materna, enquanto afanava sua bochecha:
— O que foi, meu bem? O que aconteceu, minha gata? Por que está chorando?
Fernanda abriu a boca, mas não conseguiu responder. Estava soluçando demais para dizer qualquer coisa inteligível. Limitou-se a devolver o abraço, enlaçando o pescoço de Cloara num aperto angustiado, rendida aos seus cuidados, feito um celular descarregado acoplado a uma tomada: 100% dependente de sua força.
Cloara, na compaixão zelosa dos seus 35 anos, vendo Fernanda como uma irmã caçula necessitada, correspondeu dizendo:
— Shhh, shhh, já passou, já passou.
Enquanto elas se envolviam nesta bolha de miguxês, voluntariamente se esquecendo do resto do mundo, Dalborga, vendo esta troca de carícias, julgou desnecessário intervir ali.
Logo, virou-se para Seu Paulo, a própria imagem da zueira moribunda, dizendo:
— Eu sabia que ele iria peidar pra muzenga. Talvez até esteja no colo do capeta.
* * * *
Compilação dos capítulos 17 a 33 disponível gratuita no Smashwords e Itunes. Acesse a página do meu perfil para conferir os links.
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O vlog de Carolina e o feriado antecipado no calçadão
HumorQuando Carolina se tornou vlogueira, ela ainda acreditava no poder da honestidade. Achava que isto sempre falaria mais alto, independente da situação. Porém, ela acabou subestimando o maior vilão deste país: a agressividade da opinião pública brasil...