Pretérito Imperfeito

124 21 61
                                    

Suas mãos frias o meu toque anseia

Envoltas de meu pescoço desnudo e morno

Teus sussurros de perdão descontrolados.

Nisso meus olhos rolam

Reviram-se.

Para dentro.

Nada mais é sentido

Sinto a água entrar sutilmente

Isto arde.

Mais que teu amor.

_____

1978.

Sempre fez frio quando ChangKyun me deixava sozinha. Ele caminha sem pressa até a porta sem soltar uma única palavra, ia embora sem secar minhas lágrimas. Escutava teu carro dar partida lá fora, e ir embora para a estrada, levantando a terra do quintal. Lentamente os sons que fazia iam se afastando, e finalmente eu estava solitária de novo.

Por alguns dias não escutava a voz de ChangKyun em meio a nossas brigas, seus gritos e nem seus tapas traziam saudade. A casa de madeira apenas rangia com o vento, enquanto os sapatos dele ainda estava ao lado da porta para a varanda. Teus cigarros em cima do balcão e a camisa rasgada jogada na cama do quarto. Nosso lençol bagunçado e um cheiro fraco de sexo, lentamente indo embora.

Quando os poucos dias passavam, eu ouvia entrar no quintal seu carro cor cáqui bem cuidado. ChangKyun sorria largo, com a franja do cabelo preto como escuridão cobrindo levente até seu nariz. Ele me tomava pelos braços, deixando a garrafa de lado. Teu abraço quente e o cheiro da colônia me hiponotizavam. Ele despia minha camisola de um branco quase transparente e me deixava nua por completo. Me amava sob o colchão de molas já enfraquecida, na cama de ferro pintada de branco que já descascava.

Oh, céus. Como ele me amava.

Até de madrugada, até que estivesse exausto, ele não parava. Quando o relógio de corda na parede, enfeitado de um papel com desenho de canários ao fundo, batia as três horas da manhã, ele se levantava. Eu coçava meus olhos num bocejo, vestindo a camisola e deixando as alças caídas. Eu o via sentado no degrau, com a porta aberta, olhando para a lua pelo quintal. Me sentava atrás dele e abraçava seu corpo magro, sentia seus ossos e o movimento que seus pulmões faziam enquanto ele fumava.

ChangKyun me dava um cigarro ou dois. Deitava minha cabeça sob seu colo e gentilmente beijava os hematomas em meu rosto. Seus lábios delicados pressionavam minha testa, me trazendo o sono. Mas eu não dormia ainda. Ele abria a torneira enferrujada do chuveiro de pouca pressão. A água quente caía em nossas costas, enquanto ele não parava de me abraçar um segundo se quer. Tão cansada, talvez eu dormia no banho e até o quarto ele me carregava. Dormia em seu peito ouvindo seu coração, após olhar nossos retratos em cima das cabeceiras. As fotos de meu sogro na guerra estavam rasgadas, e eu nunca me atrevi a perguntar o por quê.

Pela manhã, eu acordava antes dele. Passava uns minutos acariciando seu rosto bonito, seus cabelos negros despenteados. Na cozinha preparava o café do jeito que ele gostava, fazia sanduíches e colocava em cima do balcão. Havia dias que ele acordava bem e dias que não. Seu grunhido não me assustava, pois depois disso ele envolvia seus braços na minha cintura e cheirava meu pescoço enquanto eu ainda estava usando o fogão. Ele comia o sanduíche, mas me devorava com o olhar.

Passava sua mão em minha barriga durante a cesta, me dizia que queria um filho. Eu sonhava engravidar, e tentava. Todas as nossas noites de amor já haviam me denunciado que eu nunca seria capaz de realizar seu desejo. Mas eu escondia isso dele. E então eu o pegava bebendo mais uma vez, antes de sair para trabalhar e passar longas horas fora.

Tarde da noite ele voltava, chutava a porta e grunhia bêbado. Eu sentada de pernas cruzadas em frente a tevê, parava e o olhava. Ele caminhava pesadamente até mim e meu pescoço segurava, com violência. Eu quieta o deixava erguer meu corpo deste jeito. ChangKyun me segurava já de pé pelos meus cabelos, me inclinava e gritava. Xingava e me culpava pelos problemas do seu dia. Ele me chacoalhava e me batia contra as paredes, quando seus tapas já não bastavam. Quando ele se cansou, me deixava jogada na cama. Hora depois voltava, beijava meu corpo imóvel e entrava em mim sem cuidado algum, áspero. Quando terminava, se deitava virado ao lado contrário, assoprava a vela até apagar e dormia até outro dia.

Quando era final de semana eu me arrumava. Colocava meu melhor vestido, o verde claríssimo com renda em suas beiradas. Usava meu melhor perfume e colocava a delicada presilha de flor no cabelo solto e lavado. ChangKyun usava um terno marrom-alaranjado e seus sapatos que eu engraxava. Ele me levava até a igreja depois da estrada e me exibia as famílias vizinhas. Mas eu sabia que ele se envergonhava, pois era o único que ainda não era pai como todos os outros.

Cedo íamos embora e quando chegava em casa, ele voltava a gritar comigo. Mas desta vez quebrava copos e porta-retratos. Lembrava as fitas do nosso casamento e se sentava no sofá. Nesses dias ele chorava e me deixava o abraçar, finalmente dizia de verdade que me amava de todo o coração e tinha medo de me perder. Ele dormia ali, deitado sob minhas pernas após ver tevê e desenhar circulos imaginários com seus dedos em minha pele leitosa.

Então tudo se repetia. Sempre se repetiu, é verdade. Todo dia. Toda noite. E sempre foi o mesmo ChangKyun, ele nunca mudou. Só houve um dia diferente entre todos esses.

Ele levantou. Eu não o ouvi sair da cama. Eu acordei e suas mãos já estavam envolta de meu pescoço. Sua respiração estava pesada e seus olhos apertados, eu não o ouvia mas ele falava. Falava sem parar. Me balançou sob o chão me deixando sem respirar, me arrastou até a pia da cozinha. Ela vazava água até pingar no chão, transbordando. ChangKyun chorou e soluçou antes de me empurrar. Suas doces mãos geladas empurraram meu rosto contra a água. Gentilmente ela entrou por minha boca e nariz. Ele me soltou e me observou de longe. Caído no chão contra a parede ele estava chorando, vendo meu corpo pendurado pela cabeça debaixo da água, na pia.

As pessoas perguntavam a ChangKyun se sua esposa era muda, mas acho que de tanto beber ele nem se lembrava.

No meu velório ele chorou, pois ele agora sabia que nosso filho antes eu carregava.

1978 | changkyun!auOnde histórias criam vida. Descubra agora